Folha de S. Paulo


'Homem tem que sair da caixinha', diz única rabina em atividade no Brasil

Eduardo Anizelli/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 17-05-2017, 14h10: Entrevista com a rabina Fernanda, primeira mulher a liderar a Congregacao Israelite Paulista. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, PODER) ***EXCLUSIVO***
Rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik, primeira mulher a liderar a Congregação Israelita Paulista

Recentemente, Fernanda Tomchinsky-Galanternik, 31, mudou seu status no LinkedIn. Desde março é "rabina da Congregação Israelita Paulista", a CIP, na rede social voltada a contatos profissionais.

Nunca houve outra como ela, não nesta que é a maior congregação judaica da América Latina, com mais de 4.000 filiados. É a primeira mulher por lá e a única entre os 150 rabinos em atividade no Brasil. Antes dela, outras três brasileiras chegaram ao rabinato –todas hoje vivem no exterior.

"Homem tem que sair da caixinha e mulher também. Será que não está tudo bem ele deixar de trabalhar para cuidar da criança?", diz no auditório da CIP onde "alguns anos atrás sentava homem separado de mulher".

"Feminismo", para ela, é "palavra complexa". O que defende Fernanda: "Que os gêneros possam ter as mesmas possibilidades." Daí a abraçar slogans ideológicos...

Parte importante de sua identidade é ser mãe de Naomi, 2, e esposa de Leandro, 32, argentino que conheceu quando estudava a religião no país vizinho. Conta que, em casa, "o zero à esquerda" na cozinha é ela" –já o marido fez curso de chef e lhe "deu uma bronca" quando ensaiou pilotar a cozinha e serviu comida fria.

No ano passado, ela encontrou uma forma bem-humorada para pôr em evidência o machismo entranhado em alas mais conservadoras do judaísmo. Compartilhou no Facebook a imagem de dois homens brincando com duas crianças, extraída de uma revista (não especificada) editada por judeus ultraortodoxos avessos a reproduzir a figura da mulher.

Saldo involuntário: mais pareciam um casal gay com filhos adotivos do que outra coisa.

Nesses meios, diz Fernanda, "há esta ideologia de não expor mulher". A ironia é que "em geral são setores que não apoiam o relacionamento homossexual, e quando você olha [fotos sem mulheres], parece justamente o contrário. Sempre achei isso meio engraçado".

Você não vai encontrar fotos com mulheres, por exemplo, no "Mishpacha", popular semanário "da família judaica" (mas há colunistas femininas). Para não se indispor com ultraortodoxos em parte de Israel, uma empresa baniu dos cartazes do filme "Os Smurfs e a Vila Perdida" sua única figura feminina, a Smurfette.

O "apagão" aconteceu com uma clássica foto em que dezenas de líderes mundiais marchavam após o ataque terrorista à publicação francesa "Charlie Hebdo", em 2015. Um jornal judeu ultraortodoxo deletou todas as estadistas, como a alemã Angela Merkel.

O editor da publicação disse a uma repórter do "New York Times" que, "do nosso ponto de vista, uma mulher não é visual. Mulheres não são apresentadoras –não fazem propaganda de pasta de dente, comida de cachorro ou de qualquer coisa".

Nascida numa família de judeus pouco praticantes, com passagem por colégio e faculdade católicos, Fernanda reconhece que a alienação de mulheres na sua religião –mesmo em alas não radicais– está "dentro de grande bola de neve de tabu". Foi no exterior que detectou maior resistência ao seu interesse em virar rabina, diz.

"Em congressos lá fora, encontrei pessoas que falavam: 'Isso não é coisa de mulher'." Também já ouviu que seu curso "deve ter sido mais fácil" do que o dos colegas homens (estudou, além da Argentina, em Israel).

No Brasil se sentiu em casa. "Não sei se tive sorte." Na CIP, está apta a fazer tudo o que os outros dois rabinos fazem, como celebrar casamentos. Ainda assim, se exime de algumas atividades "mais delicadas" se achar que alguém pode se incomodar com sua presença. "Cemitério [acompanhar famílias] talvez seja a mais relevante", conta.

Sobretudo membros mais velhos da congregação podem ter um "estranhamento". "Talvez tenha gente que pensava que isso nunca fosse possível."

Uma bênção matinal proferida por muitos judeus vai assim: "Bendito sejas Tu, [...] Rei do Universo, que não me fizeste mulher" (elas substituem a última parte por "que me fez conforme Sua vontade").

Fernanda acha que é uma questão de tempo até a participação feminina se popularizar nos ritos religiosos.

A lei judaica, por exemplo, diz que "qualquer um pode ler a Torá", mas também que, quando uma mulher o faz, "pode envergonhar o homem". Mas isso, hoje, "não é um argumento relevante como o era séculos atrás", diz a rabina.


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