Folha de S. Paulo


Indígenas articulam partido para entrar no Congresso 'pela porta da frente'

Em 1º de fevereiro de 1983, a Folha publicou na primeira página uma foto de Mário Juruna (1943-2002) tomando café no Congresso. A reportagem descrevia a irritação do cacique xavante, primeiro indígena eleito à Câmara, com um churrasco insosso" que lhe serviram: "Gente branca não sabe comer carne".

Não era seu único incômodo. Se acabar a Funai (Fundação Nacional do Índio), criada em 1967 pela ditadura, "vai ser bom pra índio, pois Funai não faz nada pra Índio", disse. "Quem vai ter prejuízo é militar, que está empregado lá."

Passaram-se 34 anos, a Funai voltou a ter um general como líder, e nunca outro indígena conseguiu uma cadeira parlamentar. Um quadro que o Partido Nacional Indígena (PNI) quer reverter, diz o índio caincangue Ary Paliano, 56.

Advogado formado pela Unochapecó (SC), ele preside a sigla em formação, que precisa de 487 mil assinaturas para ser aceita pelo Tribunal Superior Eleitoral. A colheita –que costuma demorar anos e nem sempre dá certo– começa agora, diz Paliano.

O lema: "Colocar os índios no Congresso pela porta da frente". Secretário-geral do partido, Francisco de Oliveira Lima Tabajara, 57, cearense da tribo Tabajara e hoje cirurgião-dentista em Brasília, foi ao Acampamento Terra Livre, que juntou 4.000 indígenas na capital entre 24 e 28/4. No segundo dia, vários tentaram entrar no Congresso pela porta da frente –à força.

Conseguiram furar o bloqueio policial até o espelho d'água em frente à entrada. Reagiram com arco e flecha às bombas de gás da polícia. Protestavam pela retomada das demarcações de terras indígenas e pela saída do ministro Osmar Serraglio (Justiça), que um mês antes disse à Folha que era preciso "parar com essa discussão sobre terras. Terra enche a barriga de alguém?".

Tabajara acha que sim. Uma de suas lutas é contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 215. Apoiado pela bancada ruralista e repelido por índios, o texto transfere do Executivo ao Legislativo a palavra final sobre terras indígenas. "O ruralista quer tomar de vez as causas indígenas. Coloca pra lascar mesmo, quer tomar até o que a gente não tem,"

"Índio é realidade viva da ladroagem do poder público: é dono das terras, mas não se preparou e não conseguiu escrituração. E tem terra muito rica, cheia de diamantes, de ouro", afirma.

O general Franklimberg Ribeiro de Freitas, 61, indicado pelo Partido Social Cristão para presidir a Funai (o primeiro militar no cargo em 25 anos), é rejeitado por referências no meio, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Mas, dentro do PNI, seu nome foi bem recebido.

"O primeiro indígena a assumir a presidência da Funai é muito significativo", diz a historiadora Kuana, 41, ladeada por outra simpatizante do PNI, Silvia Nobre Waiãpi, 42, que em 2011 se tornou a primeira indígena mulher nas Forças Armadas.

Freitas, porém, já afirmou à Folha: "Não sou índio, sou de origem indígena. Minha mãe, avo e bisavó eram indígenas".

Assumirá o órgão em momento delicado. No fim de abril, no Maranhão, mais de dez índios Gamela foram feridos em ataque por conflito de terras. Um deles por pouco não teve a mão decepada por golpes de facão. Não é um caso isolado, afirma Tabajara. "Isso acontece direto, já nos mataram famílias inteiras."

E há duas semanas, parlamentares da bancada ruralista aprovaram o relatório final da CPI Funai-Incra, que pede o indiciamento de cerca de cem pessoas ligadas à causa indígena no país.

O estatuto do PNI foi publicado em 2013 no "Diário Oficial da União" e fala do "anseio dos índios em obter as rédeas de suas próprias vidas". "Nada adianta prometer o paraíso aos índios se não se tem os meios para realizar nada", diz texto assinado por Paliano, funcionário da Funai, "que em Brasília virou um cabine de emprego".

Se a vizinha Bolívia até presidente indígena elegeu (Evo Morales), o Brasil tem muito a avançar nessa área, afirma Tabajara. Ele só diz temer que agendas políticas à esquerda ou à direita sequestrem sua causa. Não concordou, por exemplo, com a invasão do espelho d'água do Congresso.Tabajara viu a repressão policial como justa ("não pode ultrapassar as regras da lei").

Para Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Políticas e Direitos Socioambientais do Instituto Socioambiental, a "presença de milhares em Brasília" mostra a "força e capilaridade" do movimento. Ela vê como "fundamental que os povos indígenas conquistem representação no Congresso", mas aponta como "caminho" a entrada em partidos que já existem, não a formação de um novo.


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