Folha de S. Paulo


Opinião

Libertação de Dirceu expõe poder político do Supremo

Pedro Ladeira - 2.mai.2017/Folhapress
Protesto do movimento Vem Pra Rua contra decisão do STF que libertou o ex-ministro José Dirceu
Protesto do movimento Vem Pra Rua contra decisão do STF que libertou o ex-ministro José Dirceu

A decisão de uma turma do Supremo de libertar o ex-ministro José Dirceu volta a ensinar que, no tribunal, as coisas mudam muito rápido, ao sabor dos acontecimentos. Agora uma prisão cautelar pode ser substituída "por outras medidas constritivas de liberdade", antes não podia. O que foi considerado normal e legal anos, meses ou semanas atrás, já não é mais.

O acompanhamento dos processos mostra como isso é mais comum do que pode imaginar o leitor distante da rotina do Supremo. Por exemplo, há uma súmula aprovada pelos próprios ministros que impede que o STF sequer analise (ou "conheça", no juridiquês) um habeas corpus que já tenha sido repelido pelo seu vizinho, o STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Porém o STF também pode dizer que há um evidente constrangimento ilegal na prisão, o que basta para "conhecer" o habeas corpus, julgar e libertar o preso. Foi o que aconteceu no rumoroso caso da libertação do banqueiro Daniel Dantas, em 2008. Outros casos se repetiram.

Na prática, muita coisa cabe no balaio do "evidente constrangimento ilegal". Pode ser apenas uma decisão judicial de primeira instância sobre a qual um ministro do STF discorda, ou seja, tão somente uma interpretação divergente de dois juízes.

São dois magistrados em pleno gozo de suas faculdades mentais e com experiência suficiente para saber a diferença entre certo e errado. Um mandou prender e outro mandou soltar, porém o segundo, politicamente mais poderoso, disse que o colega cometeu um ato ilegal contra alguém porque o prendeu sem necessidade. E assim é feito, cumpra-se, liberte-se o réu. Este ato, em síntese, é o exercício de um poder político pois, no campo do direito, é possível encontrar justificativas plausíveis para ambas as decisões.

Em seu voto para libertar Dirceu, o ministro Dias Toffoli escreveu: "Por mais graves e reprováveis que sejam as condutas supostamente perpetradas, isso não justifica, por si só, a decretação da prisão cautelar". Esse é o entendimento do ministro. Mas será também o da totalidade dos juízes no país, tão ou mais preparados que um ministro do Supremo? Do juiz Sergio Moro, com certeza, não é.

Se um sujeito esquarteja uma criança ("por mais graves e reprováveis que sejam as condutas"), ele não merece ser preso de forma cautelar? As pessoas podem dizer: "Ah, mas corrupção é diferente". Será mesmo? E o leite roubado das crianças, que afeta seu crescimento físico e intelectual, não é um tipo de esquartejamento?

Lula Marques - 24.abr.2017/Folhapress
Estátua
Estátua "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti, na frente do Supremo Tribunal Federal

O que vale para um caso já não vale para outro, e aqui entra a política. Dizer isso é chover no molhado, mas parece sempre necessário repetir: direito não é ciência exata, não é uma cirurgia craniana ou a busca por exoplanetas. É falácia dizer que há "juízes técnicos" e juízes "não técnicos". Em todos os magistrados, como em todos os seres humanos, há uma porção inescapável de subjetividade, de valores morais e éticos, de política, enfim, que vão afetar seu julgamento, para o bem e para o mal. (Aliás, da última vez que disse estar à procura de "um nome técnico", o Palácio do Planalto encontrou o ex-secretário da Segurança do Governo de São Paulo, do PSDB.)

Ministros do STF não são entidades etéreas que flutuam durante o dia e dormem à noite em bolhas à prova de som. Eles veem TV, leem jornais, vão a festas, frequentam restaurantes. Têm amigos e inimigos. Têm poucos ou muitos contatos com políticos. Ouvem e são ouvidos. Têm ambições e vaidades em maior ou menor grau. Como todos nós. Se concordamos em todos esses pontos acima, por que haveríamos de dizer que eles só tomam decisões indiscutíveis, acima de qualquer suspeita?

É bom lembrarmos o potencial explosivo dessa constatação. É mais ou menos como dizer que o rei está nu. Os 11 magistrados do STF não têm o poder sobrenatural de detectar uma verdade suprema antes e acima de todos os outros cidadãos, magistrados ou não, à prova de qualquer dúvida. São pessoas de carne e osso, falíveis, que chegaram a esses cargos não pelo voto popular, mas indicados pelo presidente da República que é filiado a um partido político, dentro de um programa político.

Eles analisam as leis a partir de um raciocínio sobre um punhado de palavras impressas. Por isso que, de repente, podem começar a enxergar problemas que antes não haviam enxergado e deixar de ver entraves que antes pareciam evidentes. O julgamento depende do momento histórico, do réu e de sua história pessoal e política, do advogado do réu, depende sobretudo da "evolução do entendimento".

A libertação de Dirceu levanta uma lebre do tamanho da estátua "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti (1918-1989), a moça com venda plantada à frente do Supremo. Perguntas estão à espera de respostas, que na verdade nós sabemos que nunca virão.

Alguns exemplos: se o Supremo houvesse libertado as inúmeras pessoas presas de forma cautelar pela Operação Lava Jato de março de 2014 a março de 2017, haveria a própria Lava Jato? Descobriríamos o tamanho da fraude monumental que envolveu bilhões de reais? Haveria impeachment da presidente da República? Haveria delação da Odebrecht e seus mais de 200 políticos implicados? Por que todos os outros presos de forma cautelar pela Lava Jato continuam no cárcere? Não deveriam ter sido soltos imediatamente junto com Dirceu? Manter essas pessoas presas significa que o Estado brasileiro age como um fora-da-lei?

A resposta mais curta pode ser (como fez o ministro Celso de Mello): "Cada caso é um caso". É verdade: e cada réu é um réu, tanto os do presente quanto os que estão por vir.

Editoria de Arte/Folhapress
LEVE E SOLTOSupremo manda libertar José Dirceu
LEVE E SOLTOSupremo manda libertar José Dirceu

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