Folha de S. Paulo


Chacina em Mato Grosso foi precedida por episódios violentos registrados

Adriano Vizoni/Folhapress
Casa de uma das vítimas da chacina que matou nove pessoas no interior do Mato Grosso
Casa de uma das vítimas da chacina que matou nove pessoas no interior do Mato Grosso

O recente massacre de nove trabalhadores rurais e posseiros em área remota do noroeste de Mato Grosso foi precedido por dois episódios violentos registrados em boletins de ocorrência, segundo moradores do local.

Em 6 de outubro de 2014, dia de eleição, encapuzados queimaram as 11 casas e barracos construídos na área em disputa entre posseiros da agrovila Taquaruçu do Norte e um ou mais grileiros não identificados.

Após dois meses, os posseiros voltaram à região, mas, em maio do ano seguinte, foram expulsos sob a mira de armas, afirmam os moradores. Novamente, procuraram a polícia e voltaram ao local após algumas semanas.

O impasse terminou em derramamento de sangue no último dia 19, quando guaxebas (capangas de aluguel) mataram, a tiros e golpes de facão, todos os que encontraram pela frente ao longo da linha (estrada) 15, em um dos episódios de violência no campo mais sangrento dos últimos anos.

"Eles disseram: 'Do rio Pardo pra cá é nosso. Se continuar, vamos matar'. Eles cumpriram a promessa", afirma o posseiro Abenis Pedro de Luna, 59, que foi rendido por cerca de dez homens armados e obrigado a indicar as moradias queimadas no ataque de 2014.

Nas última quarta (26) e quinta-feira (27), a Folha foi a primeira equipe de reportagem a visitar Taquaruçu do Norte, localizada a 230 km por estrada de terra da sede do município de Colniza (1.050 km de Cuiabá), distância percorrida em pelo menos seis horas –a viagem pode demorar até alguns dias em época de chuva.

Os últimos 22 km são feitos por uma estrada estreita na mata fechada. Na chuva, só passam veículos 4x4 e motoqueiros experientes.

Na área de 20 mil hectares, gerida por uma associação, estão cadastradas cerca de 120 famílias –nenhuma com escritura da terra. "Aqui não tem papel de nada. O documento somos nós", disse, sob anonimato, um dos poucos posseiros que permaneceram no local após o massacre.

A maior parte das casas, construídas em madeira, fica na vila. Não há rede elétrica nem telefônica. A única presença do Estado são duas professoras que ensinam num barracão e uma agente de saúde treinada para detectar os recorrentes casos de malária –todas as três contratadas pelo município entre os moradores.

As estradas de acesso aos lotes foram abertas por madeireiros, a principal atividade econômica da região. Em troca, os posseiros vendiam as árvores -as mais nobres já não existem mais. "Eles eram os que nos davam de comer", diz um deles.

Para complementar a renda, muitos trabalham para outros posseiros, por um valor em torno de R$ 55 por dia -R$ 150 se a tarefa for derrubar a floresta. Dos nove assassinados, seis exerciam essa função e três tinham lotes no local da chacina.

Distantes dos centros de compra, os posseiros fazem agricultura de subsistência. As áreas de cultivo surpreendem pela diversidade e incluem café, cacau, milho, arroz, banana, mamão, entre outros produtos. Alguns também criam gado, porcos e galinhas.

A caça é comum. Na noite em que a reportagem dormiu no local, a única carne do jantar era de anta.

"A terra aqui é muito boa", diz o posseiro Pedro Teixeira, 50, que chegou em 2016.

DISPUTA

Cerca de 3.600 hectares estão sendo disputados com grileiros, segundo moradores. Eles afirmam que são fazendeiros da região, mas nenhum quis fornecer nomes, mesmo sob promessa de anonimato. "A relação com eles é péssima, nem olho na cara deles", resume um posseiro.

Essa área em disputa é cortada pela linha 15. Os nove foram mortos na tarde do dia 19, uma quarta-feira, em quatro diferentes pontos do seu entorno, num total de 9 km. Desses, dois posseiros da área foram degolados, incluindo o pastor Sebastião de Souza, 57.

Por causa do acesso difícil –da vila, é preciso atravessar um pequeno rio a pé e percorrer 10 km–, a notícia do massacre só chegou aos demais residentes no dia seguinte, por meio de um dos dos quatro moradores da linha 15 que conseguiram se esconder.

Procurada pela reportagem da Folha desde as 14h de sexta (28), a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso não informou quais providências foram tomadas após a queima das casas e a expulsão dos posseiros da área em disputa. A assessoria de imprensa alegou que o secretário Rogers Jarbas estava em reunião.

-

AS VÍTIMAS

Perfil dos mortos em Taquaruçu do Norte

Sebastião de Souza, 57
Pastor da Assembleia de Deus em Guatá, distrito de Colniza a cerca de 140 km de Taquaruçu do Norte. Era um dos posseiros da linha (picada) 15, alvo de disputa. Sua casa no local já havia sido incendiada em 2014. Foi encontrado com um facão enterrado na nuca

Fábio dos Santos, 37
Trabalhava principalmente como pedreiro. Foi contratado pelo pastor Sebastião de Souza para limpar o terreno -o dia de trabalho custa cerca de R$ 55 na região. Morava em uma vila próxima e não tinha terras. Evangelista da Assembleia de Deus, deixou quatro filhos

Ezequias de Oliveira, 26
Posseiro, tinha um lote fora da área em disputa e estava no local trabalhando como diarista. Fiel da Assembleia de Deus

Edison Antunes, 32
Outro posseiro que estava no local contratado como diarista. Era diácono da Assembleia de Deus. Tinha quatro filhos

Aldo Carlini, 50
Um dos que estavam no local trabalhando como diarista. Seu lote está fora da área em conflito

Samuel da Cunha, 23
Recém-chegado de Nova Brasilândia (RO), estava no local como diarista e também tinha lote fora da linha 15

Valmir do Nascimento, 55
Um dos três mortos que tinham lote na linha 15, área do assentamento em disputa. Foi encontrado com as mãos amarradas para trás. Tinha dois filhos

Izaul dos Santos, 50
Posseiro da linha 15, palco de disputa. Estava no local desde o ano passado, quando comprou cerca de 200 hectares por R$ 110 mil. Respondia a um processo por homicídio simples. O seu filho e a nora são dois dos quatro que estavam na área da chacina e conseguiram fugir

Francisco da Silva, 56
Também estava no local como diarista. Em agosto de 2015, foi multado em R$ 115 mil pelo Ibama por ter desmatado ilegalmente 22 hectares de floresta


Endereço da página:

Links no texto: