Folha de S. Paulo


O Brasil precisa reconhecer que a transição democrática acabou

Alan Marques - 05.mai.2016/Folhapress
BRASÍLIA, DF, BRASIL, 05.05.2016. Os 11 ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) se reúnem para discutir uma ação apresentada pela Rede pedindo para que Eduardo Cunha (PMDB-RJ) seja afastado de imediato da Presidência da Câmara e impedido de estar na linha sucessória da Presidência da República. (FOTO Alan Marques/ Folhapress) PODER
Sessão no Supremo Tribunal Federal

Estamos em um momento chave na história do país. Nunca se viram tantos integrantes da elite política e econômica sendo investigados por corrupção. Todavia, há um longo caminho a percorrer até que a lista de Fachin resulte em algum tipo de condenação. Mesmo uma reforma política capaz de minimizar incentivos à corrupção será insuficiente, se não vier acompanhada de outras para garantir que a corrupção seja efetivamente punida.

Nesse ponto, porém, há um desafio adicional. No Brasil, há diversos arranjos institucionais e garantias processuais que minimizam a probabilidade de punição de corruptos. Boa parte dessas proteções foram adotadas no momento de transição democrática, motivadas pelo temor de um retrocesso às práticas adotadas pela ditadura militar. Pareciam perfeitamente justificáveis naquele momento. Mas será que ainda fazem sentido, na mesma extensão, no contexto presente?

Enquanto o país assiste estupefato a uma lista cada vez mais longa de investigados por corrupção, diversos juristas, professores de direito e advogados descrevem a Lava Jato e seus desdobramentos como "caça às bruxas".

Lembram que não se pode fazer justiça sem obedecer o direito. Enfatizam a importância de respeitar escolhas feitas pelo nosso ordenamento, como a não admissibilidade de provas colhidas ilicitamente em processo penal.

Em nome dessas escolhas, criticam o uso de prisões preventivas para incentivar a colaboração dos réus em investigações de corrupção. Esse uso instrumental do direito seria repugnante -uma verdadeira "tortura psicológica", para alguns juristas.

Esse discurso sugere que temos apenas duas opções: obedecer aos procedimentos processuais em vigor no país, interpretados da forma mais radicalmente possível em favor do réu, ou voltar à Idade Média. Mas não é tão simples assim.

Argumentar que os procedimentos adotados nas presentes investigações seriam "um retorno ao autoritarismo" e "um retrocesso na evolução institucional do país" aponta para riscos reais, mas ignora que há alternativas.

Não temos aqui uma escolha entre dois polos, mas um espectro de arranjos institucionais que permitem conciliar devido processo legal e combate ao crime. Basta olhar para sistemas jurídicos que fizeram opções distintas.

Na questão das provas ilícitas, por exemplo, o Judiciário pode subordinar a proteção de direitos individuais ao interesse da coletividade, mas de maneira parcimoniosa e fundamentada, sem dar uma carta branca para autoridades judiciais e investigatórias. Por exemplo, em 2009, a Suprema Corte canadense estabeleceu um teste para admitir provas colhidas ilicitamente baseado em três critérios: 1) quão séria foi a violação da lei na colheita da prova; 2) qual o impacto dessa violação no acusado; 3) qual o interesse social a ser protegido naquele processo.

Ou seja, a ilicitude da prova apenas serve de obstáculo à condenação se for muito mais grave do que a ilicitude do crime que possa ter sido potencialmente cometido. Caso contrário, prevalece o interesse público.

Da mesma forma, aqueles que criticam o uso instrumental de prisões preventivas não parecem indagar que tipo de prática é adotada em outros países. Nos EUA, por exemplo, os promotores podem negociar sentenças menores com acusados que concordarem em confessar o crime.

Esse tipo de discricionariedade poupa tempo e dinheiro do sistema penal, tornando-o muito mais célere e efetivo. Corre-se, obviamente, o risco de que hajam erros e excessos. O próprio sistema dos EUA é alvo de muitas críticas.

O Reino Unido, por sua vez, criou um sistema robusto de controle judicial dessas negociações em casos de corrupção, justamente para coibir abusos. Considerar esses riscos como uma razão para não adotar essa solução equivale a jogar fora o bebê com a água do banho.

Em contraste com uma visão maniqueísta, que sugere haver um único procedimento certo -uma única maneira de proteger direitos, precisamos reconhecer que qualquer arranjo institucional virá com custos, benefícios e riscos. Precisamos olhar para outros países e nos perguntar se há mudanças institucionais possíveis para que o nosso devido processo legal não se transforme em garantia de absolvição.

Por exemplo, nos últimos anos, 17 países adotaram uma Justiça anticorrupção, com juízes especializados e garantias processuais mais adequadas a esse tipo de crime. É curioso que se discuta tão pouco a possibilidade de adotar essa solução no contexto brasileiro.

Essa é só uma das várias medidas em jogo quando olhamos para como outras nações combatem corrupção. Sem reformas institucionais desse calibre, é difícil acreditar que muita coisa mude.

O Brasil precisa reconhecer que a transição democrática acabou. Trinta anos após o fim da ditadura, precisamos começar a nos perguntar de que tipo de ordenamento precisamos daqui para a frente. Precisamos aprender com a experiência de três décadas aplicando o sistema atual.

O índice baixo de condenações penais por corrupção no Brasil certamente indica que há algo muito errado com arranjos institucionais e interpretações jurídicas que adotamos até então. Ficar atrelado ao nosso passado apenas nos dará mais do mesmo: muito direito e pouca justiça.

MARINA MOTA PRADO é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto, Canadá


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