Folha de S. Paulo


Análise

No caso da anistia, posição final mais uma vez deve caber ao STF

Não existe hoje um crime específico de caixa dois, ao menos com este rótulo.

O que existe é a criminalização de diversas condutas que costumam fazer parte da prática do caixa dois, como nos casos em que o dinheiro é fruto de atos de corrupção, lavagem de dinheiro, crimes financeiros e tributários.

Assim também ocorre com a falsificação de documento ou omissão de declaração que deveria ser informada à Justiça Eleitoral, constituindo crime eleitoral punível com pena de reclusão de até cinco anos.

Isso não quer dizer que ele seja permitido. O que ocorre é que depende de várias condutas e, dentre elas, muitas já são criminalizadas.

A legislação vem ampliando as restrições e os meios de fiscalização ao caixa dois, porém nota-se a sofisticação da prática, tornando sua investigação mais complexa.

A esse cenário o sistema normativo deve reagir e buscar meios para ampliar a efetividade da fiscalização e da punição.

Assim surge a proposta de criminalizar a prática do caixa dois em si, criando um tipo penal próprio.

Embora constitua uma novidade legislativa, englobará práticas já previstas em outros dispositivos legais.

O que não era criminalizado passa a ser. Entretanto, para os atos que já eram criminalizados, o que se tem é a continuidade.

Não parece haver novidade capaz de atingir atos já concretizados sob a norma antiga: o que era crime não deixa de ser.

EMBRIAGUEZ

No Brasil, já tivemos diversos exemplos dessa prática, dentre eles a embriaguez ao volante. Até essa criminalização específica, aquele que dirigia alcoolizado deveria ser punido por direção perigosa.

Portanto, não é porque uma norma mais específica foi criada que os fatos ocorridos foram perdoados.

Para que isso acontecesse seria necessária uma norma expressa anistiando os casos antigos.

Assim, a existência de uma norma que crie o específico crime de caixa dois não teria a capacidade de anistiar automaticamente os atos que já eram criminalizados por outras normas.

Anistia é uma espécie de esquecimento e tem a finalidade de passar uma "borracha jurídica" sobre o fato criminoso.

Para fins jurídicos, é como se ele não tivesse acontecido.

Já tivemos alguns exemplos, como a que anistiou os crimes militares entre 1961 e 1979, ou a que anistiou os policiais e bombeiros militares de vários Estados que tinham participados de movimentos reivindicatórios.

Mas a anistia deve ser expressa em lei e sancionada pelo presidente. Não deve ser fruto de um ato judicial interpretativo ou decorrer do silêncio da norma.

Por força de nossa engenharia constitucional, a questão pode ser ainda levada ao Judiciário.

A constitucionalidade de uma anistia ampla e irrestrita poderia ser alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal, talvez diante de sua razoabilidade ou proporcionalidade.

Afinal, como explicar que, em meio a um pacote para combater a corrupção, seria inserida uma anistia que poderia promover o esquecimento de diversos crimes, ilicitudes e até reparações de danos?

Parece que independente da direção que o legislativo seguir, a posição final será mais uma vez do STF.

DIOGO RAIA é pesquisador da Fundação Getúlio Vargas/Direito em São Paulo


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