Folha de S. Paulo


Prioridade pós-impeachment deve ser reforma política, diz ex-embaixador

Em 1997, Melvyn Levitsky se viu numa saia justa quando era embaixador dos Estados Unidos no Brasil e um documento do governo americano veio a público dizendo que o país estava mergulhado em "corrupção endêmica".

Quase 20 anos depois, ele acompanha o julgamento da presidente Dilma Rousseff com a sensação de que houve muitos avanços, mas falta o principal, a reforma política. "A base da corrupção é a estrutura política", disse à Folha por telefone da Universidade de Michigan, onde é professor da Escola de Política Pública Gerald R. Ford.

Sua relação profissional com o Brasil havia começado bem antes, em 1965, quando Levitsky chegou ao país um ano após a instauração do regime militar para servir como cônsul dos EUA em Belém. "Aquilo, sim, foi um golpe", disse. Leia a entrevista:

Gerald R. Ford School/University of Michigan
O ex-embaixador dos EUA no Brasil Mel Levitsky, durante evento da Universidade de Michigan (EUA). *** ​​Melvyn Levitsky Policy Talk @ the Ford School, held on Thursday, February 27, 2014. Photo: Gerald R. Ford School / University of Michigan ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O ex-embaixador dos EUA no Brasil Melvyn Levitsky em evento da Universidade de Michigan, em 2014

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Folha - A presidente Dilma disse em seu discurso de defesa que o "mundo observa" o processo de impeachment, que ela considera uma tentativa de golpe. Como fica a imagem internacional do Brasil?

Melvyn Levitsky - Não estou certo de que o mundo está olhando. As pessoas que contam sabem que o Brasil esteve em declínio nos últimos anos e sabem da quantidade de corrupção que foi exposta, o que certamente não é bom para a imagem do Brasil. O fato de o Brasil estar recorrendo ao que parece ser um processo constitucional para julgar uma presidente por crimes passíveis de impeachment, eu não chamaria de golpe. De certa forma é a democracia em ação. Eu estava no Brasil quando houve uma ditadura militar. Aquilo, sim, foi um golpe.

Como o mundo verá o Brasil pós-impeachment?
A maioria dos países trabalha com o governo que está no poder. Qualquer que seja o processo, há relações significativas entre o Brasil e o mundo e isso continuará. Não acho que haverá muita diferença, talvez alguma relutância inicial, afinal o país estava indo tão bem há alguns anos e foi manchado por esses escândalos de corrupção. Mas há pessoas como eu que admiram o fato de o Brasil ter procuradores e juízes jovens revelando a corrupção generalizada que sempre existiu.

Quando eu era embaixador no Brasil, pouco antes da visita do presidente Bill Clinton ao país, nosso guia comercial, um longo documento que assinei descrevia a situação como "corrupção endêmica". Houve muitos ataques ao documento e a mim na imprensa. Na época eu disse que a descrição havia sido inoportuna, mas que era verdadeira. O problema maior nem era a corrupção em si, mas a sensação de impunidade de uma classe. Essa sensação está ligada aos problemas do Brasil, a como as pessoas vêem o governo, se assumem responsabilidades, se pagam impostos, etc.

O que melhorou desde a sua época como embaixador?
A crise foi um golpe muito duro na imagem do Brasil como o país do futuro. Mas a longo prazo, do ponto de vista do lugar do Brasil no mundo, há um aspecto positivo, de que há uma nova geração no Brasil que não segue a tradição nepotista do pai para filho e uma sensação de que se um político fizer algo errado ele será exposto. Acho que o Brasil evoluiu muito, algumas áreas do país são bastante modernas e espero que depois desse período extremamente difícil o Brasil salte para uma próxima fase, de desenvolvimento econômico e político.

Uma outra coisa: não gosto de dar sermão nos brasileiros, mas acho que o sistema político precisa ser reformado. O fato de haver tantos partidos e de ser possível trocar de legenda com tanta facilidade, com acordos feitos em troca de votos e cargos, é um grande problema. Quando eu era embaixador, Fernando Henrique Cardoso disse que tentaria fazer uma reforma política, mas não conseguiu e ficou mais focado na economia. Combater a corrupção é fácil em comparação com a reforma política. A base da corrupção é a atual estrutura política.

A presidente Dilma não está sendo julgada por corrupção, mas mais de metade dos senadores que decidirão seu destino tem problemas com a Justiça. Isso mancha o processo?
Acho que sim, porque as motivações de muitos dos que votarão não são legais, mas políticas. Mas acho que isso não afetará as relações com os EUA. Em termos de ações e a substância das relações, comércio, tropas de paz na ONU, a situação na América Latina e a crise na Venezuela, todos esses interesses não mudarão por causa de um novo presidente.

Dilma teve a má experiência de ter os e-mails interceptados [pelos EUA], houve um período de declínio nas relações, que parecia estar melhorando e agora tudo entrou em pausa devido ao que está acontecendo. Acho que Temer tentará ser mais ativo na política externa, já que sua imagem doméstica é desfavorável. É o que costuma acontecer nos Estados Unidos. Quando um presidente está em fim de mandato ele se concentra em assuntos externos, porque domesticamente não consegue fazer quase nada.

Juca Varella/Folhapress
ORG XMIT: 183401_0.tif Luiz Inácio Lula da Silva durante encontro com o embaixador dos EUA, Melvyn Levitsky, em Brasília (DF). (Brasília (DF), 17.05.1995. Foto de Juca Varella/Folhapress. Negativo: BS 01309-1995)
O então embaixador dos EUA, Melvyn Levitsky, em encontro com Luiz Inácio Lula da Silva em 1995

O que o governo dever fazer para restaurar a confiança no Brasil?
Políticas de mercado, derrubada de barreiras comerciais, envolvimento em negociações comerciais. Mas o principal é que a economia volte a funcionar. Os investidores sempre estarão interessados no Brasil, é uma grande economia, há muitas empresas dos EUA no país, mas algumas estão esperando para ver o que acontece. Depois que passar o impeachment haverá um período de observação para saber que tipo de políticas estão sendo implementadas, como as despesas do governo estão sendo administradas e qual será a atmosfera de investimento.

Certamente haverá uma retomada do investimento no Brasil, mas isso ficará em suspenso por um tempo, até as pessoas terem uma noção de como o governo funcionará. Digamos que a Dilma volte, ela terá que nomear um novo gabinete. O Brasil terá tido três governos em menos de um ano. Isso seria disruptivo. Talvez haja alguma relutância no início, mas os investimentos voltarão.

Com Michel Temer na Presidência a tendência é uma aproximação com os EUA?
Tivemos vários períodos em que houve dificuldades nas relações, mas os interesses básicos não mudaram. Se o governo se mover mais para o centro isso ajudará. O comércio é muito importante para a economia do Brasil. A situação da economia mundial não é das melhores, mas os EUA estão relativamente bem e são um bom parceiro comercial para o Brasil. Minha sensação, e acho que o novo governo sabe disso, é que boas relações com os EUA serão benéficas para o Brasil. É uma boa aposta para a economia do Brasil intensificar as relações com os Estados Unidos. Estou relativamente otimista em relação ao Brasil, uma vez que esse processo chegue ao fim.

E a eleição presidencial americana? Há diferença para o Brasil entre uma vitória de Hillary Clinton e Donald Trump?
Sobre Trump, é impossível prever. Com Hillary basicamente teremos mais do mesmo. Quando eu era embaixador a Hillary foi duas vezes ao Brasil, uma por conta própria. Ela gostou dos brasileiros e ficou muito interessada no país. Infelizmente nós prestamos mais atenção na América Latina quando as coisas vão mal.

Eu geralmente voto no Partido Republicano, mas não posso votar no Trump. Também não sou um grande fã dos Clinton, então esta é uma eleição em que muita gente vai votar no candidato que faça menos estrago. Não há uma atmosfera de muito entusiasmo por aqui, algo que também ocorre no Brasil. Talvez apareça alguém com novas ideias no Brasil, o que nós precisamos aqui também. Certamente esse alguém não é Donald Trump.


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