Folha de S. Paulo


Era lulopetista teve símbolos de glória e decadência

Sobe e desce

Em abril de 2009, quando o presidente norte-americano, Barack Obama, referiu-se de maneira bem-humorada e informal ao seu colega Luiz Inácio Lula da Silva, chamando-o de "o cara" ("my man") e o apresentando como o líder "mais popular da terra", o Brasil parecia pronto para consolidar no imaginário internacional uma nova versão de si mesmo. Ao já reconhecido "soft power" cultural e diplomático o país acrescentava indícios convincentes de que estaria, enfim, cuidando da vida real para enfrentar sua face mais tenebrosa –a da desigualdade social, da violência e das reincidentes dificuldades econômicas.

Sob Lula, brasileiros entravam em massa pelas portas dos elevadores da ascensão social, reduzindo a visão de sua vasta paisagem miserável e subdesenvolvida.

Num momento em que os países ricos passavam pela ressaca recessiva que se seguiu à bebedeira irracional dos cassinos financeiros, os mercados emergentes apareciam como um ponto de fuga otimista para a perspectiva sombria do quadro global.

ESPECIAL IMPEACHMENT

Se a China se impusera como a nova e inelutável potência, e se a Índia impressionava pelas conquistas e pelo potencial de consumo de sua população, o Brasil projetou-se como uma versão ocidental e "cool" dos emergentes.

Foi no mesmo ano de 2009, em novembro, que a revista britânica "The Economist" publicou a famosa capa com o Cristo Redentor subindo aos céus propelido por combustão de foguete. Foi um selo liberal fugaz, porém valioso, para o lulopetismo.

Dentre as produções culturais que tentaram retratar esse novo perfil do país, nenhuma superou, ao menos em repercussão e sucesso de público, a novela "Avenida Brasil", de João Emanuel Carneiro, exibida pela Globo em 2012, quando a presidente Dilma Rousseff entrava em seu segundo ano de mandato dando ainda a impressão de ser uma grata surpresa.

A novela levava a milhares de espectadores as peripécias da "nova classe média" ou da "nova classe trabalhadora", numa trama que se iniciava ainda nos anos de Fernando Henrique Cardoso. Bateu todos os recordes de audiência e faturamento.

Não foram, porém, apenas os mais pobres que melhoraram de vida. Os anos Lula também propiciaram oportunidades de enriquecimento nas camadas de maior renda: remediados chegaram à classe média alta, quase ricos se tornaram milionários e estes começaram a contar bilhões. O novo-riquismo, efêmero ou não, desfilou de alto a baixo e da esquerda à direita.

Alguns personagens se tornaram figuras carimbadas desse álbum. O mais conhecido foi possivelmente Eike Batista, com sua diva encoleirada e seus planos mirabolantes. Na sua caricatura midiática de empreendedor de um Brasil novo, ele atestava que, como nunca antes se vira na história desse país, banqueiros, empreiteiros, empresários rurais e demais empreendedores viam seus lucros atingir as alturas. Praticamente todos os setores experimentaram seu "boom" –da construção civil ao mercado de arte, passando pelas operosas e lucrativas igrejas evangélicas.

Na música popular, uma visão mais cética desse processo foi lançada pouco antes de "Avenida Brasil": "Neguinho", de Caetano Veloso, gravada em "Recanto" por Gal Costa. "Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro, um GPS e acha que é feliz".

Foi um ano depois, em junho de 2013, que neguinho estourou e resolveu sair às ruas para reclamar. As manifestações marcaram uma data e foram um ponto de inflexão no silêncio dos movimentos sociais de esquerda, anestesiados pelo petismo estatal.

O cheiro de queimado já se sentia no ar. Corrupção, aparelhamento do Estado, economia em deterioração. A fumaça não deixava dúvida de que havia um incêndio atrás da porta. Se uma gama variada do espectro ideológico saiu de casa para fazer passeata, não há dúvida de que a grande novidade foi a aparição em cena da direita. O gigante que despertou.

Desde os protestos, os signos otimistas do ciclo de Lula passaram a mudar de sinal –e logo o Cristo-foguete da "Economist" reapareceria como um artefato desgovernado embicado para o desastre. "O Brasil estragou tudo?" perguntava o título na capa da revista.

PT no poder

Ao que tudo indica, sim. E, quando os primeiros resultados da Operação Lava Jato começaram a ir ao encontro dos equívocos políticos e econômicos de uma presidente aturdida e incapaz de enunciar ideias razoáveis e concatenadas, o desastre se anunciava iminente.

A petista, ao contrário do que se possa ter imaginado, conseguiu reeleger-se convencendo os eleitores, por margem estreita que tenha sido, de que faria o contrário do que logo passou a fazer.

A vitória difícil, insuflada por peças de marketing delirantes e constrangedoras, potencializou o inconformismo dos que haviam por um momento engolido mas jamais digerido o PT no poder.

O ambiente de polarização transformou as redes sociais em praças de guerra, e o gigante retornou às ruas. O "cara" de Obama foi vestido de presidiário e passou a atender pelo apelido de Pixuleco, enquanto o pato liberaloide da Fiesp ganhava fama.

Na expectativa de que o abreviamento do ciclo "social-democrata" pós-democratização pudesse propiciar rápida retomada dos negócios e o início de uma era liberal no país, costurou-se uma coalizão para mudar o rumo da história –ou quem sabe reiterá-lo.

A rara janela de oportunidade para lançar uma nova agenda e retirar o PT da sala uniu Judiciário, Legislativo, partidos de oposição, entidades empresariais e meios de comunicação.

Sob a batuta evangélica e acanalhada (mas conveniente e descartável) de Eduardo Cunha, orquestrou-se o impeachment. Num cenário de canetadas, decisões judiciais criativas e lances de arbítrio, coreografou-se uma dança constitucional e institucional para a conspiração -que mereceu os previsíveis aplausos e a adesão de conservadores e setores majoritários da sociedade, exasperados com a crise nacional.

Chegou-se, nesta quarta, enfim, com a votação no Senado, ao objetivo perseguido por alguns desde o primeiro minuto que se seguiu à recondução de Dilma Rousseff ao Planalto.

Que novas realidades e representações simbólicas estarão por vir –além da máscara opaca de Michel Temer e do séquito fisiológico e farsesco de políticos que o apoiou no Legislativo, entre salvas de canhão, preces e louvações à família? O tempo nos dirá.

Evolução da economia


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