Folha de S. Paulo


Principais desafios de Temer são contas do Estado e costura de maioria

Crise que vai e crise que vem

O maior enrosco do Brasil, e do governo Michel Temer, são as finanças do Estado.

"Finanças" e, sobretudo, "Estado" não existem na vida vivida. São conceitos abstratos das complexas sociedades modernas e conotam obrigações entre cidadãos.

O conjunto dos brasileiros, por exemplo, deve dois terços do PIB (cerca de R$ 4 trilhões) a uma fatia menor de credores. O "Estado" é o intermediário dessa relação.

A dívida pública –devida por todos nós, portanto– explode. Ao final de 2017 poderá atingir 80% de tudo o que se produz em um ano no país.

ESPECIAL IMPEACHMENT

O "Estado" também sela contratos entre dois conjuntos de cidadãos, em larga medida sobrepostos: o dos que pagam impostos e o dos que recebem serviços (como saúde e educação) e rendas (pensões e bolsas assistenciais).

Esse acervo de vínculos entre obrigações e direitos entrou num período de desequilíbrio crônico. Neste ano faltará algo como 2,5% do PIB (R$ 150 bilhões) para fechar as contas do acordo civil.

A diferença é coberta com mais dívida, devida por todos nós, e a solução do problema é empurrada para a frente.

O novo governo não poderá usar tal expediente nessa escala. Credores fugiriam, ou cobrariam juros incapacitantes, e ajudariam a elevar o dólar e a inflação. O Brasil mergulharia numa segunda e mais dolorida etapa da crise.

Para além do impeachment

Para completar o quadro desalentador, nunca se viu tanta desagregação partidária neste ciclo democrático. Os negociadores do contrato civil, incumbidos da correção ou do aprofundamento do desequilíbrio, estão descoordenados e desorientados.

A tessitura de sólida maioria reformista no Congresso, portanto, é a tarefa basal do 41º presidente. Sem ela, tudo o mais fracassará, embora "tudo o mais" seja uma montanha de desafios jamais escalada na Nova República.

A favor de Temer estará o ciclo econômico. A produção despencou tanto –a queda de 10% na renda per capita, como a do triênio 2014-2016, é uma anomalia histórica– que uma recuperação em curto prazo é bastante provável.

A inflação cede e o dólar se estabilizou desde que se consolidou a expectativa de troca de governo. A escalação de uma equipe econômica reputada permitirá a redução relativamente rápida dos juros.

O restante são espinhos.

As consequências da crise explodem nos Estados e municípios e incidem no bem-estar dos cidadãos. Há um calote consentido pela Justiça em obrigações devidas por governos estaduais à União.

Temer terá de retomar quase do zero o penoso enquadramento das finanças subnacionais. O monstro parecia morto ao final do governo Fernando Henrique Cardoso, mas foi revigorado.

Será preciso ceder a governadores e prefeitos, em troca do compromisso desses gestores com o controle dos gastos nas próximas décadas. O governo federal receberá ainda menos recursos em razão desse salvamento inevitável.

Frustra-se mais uma receita futura importante do cofre federal, já atingido pelos efeitos de mais de 20 meses de recessão na coleta de impostos. As obrigações são rígidas por lei e precisam ser pagas, mas os financiadores (os contribuintes) não damos conta.

A equipe de Temer deverá de imediato buscar no Congresso o relaxamento parcial da rigidez desses contratos civis. Como consequência, o financiamento de serviços públicos seria reduzido.

Outra ação premente será a elevação das receitas da União, o que recebeu o nome eufemístico de "racionalização tributária". Contribuintes serão convocados a pagar mais para financiar os direitos mediados pelo Estado.

Benefícios podem ser anulados, e cobranças de impostos, apertadas. Ninguém que faz contas descarta a criação de tributos (como a CPMF) ou a elevação de existentes.

Em paralelo à duríssima etapa de ações emergenciais, talvez comece o jogo que mais importa. Trata-se da correção das obrigações duradouras que vinculam esta e as futuras gerações de brasileiros.

Entrariam em cena propostas como o aumento da idade de aposentadoria, a limitação do gasto público, o fim das cotas preestabelecidas de despesas, um novo regime de correção e incidência do salário mínimo ou a redistribuição da carga tributária.

Michel Temer terá a oportunidade de iniciar um diálogo entre os brasileiros sobre os requisitos, os meios e a velocidade para a aproximação dos ideais de bem-estar partilhados pela grande maioria dos cidadãos. Mas essa conversa irá muito além de 2018.


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