Folha de S. Paulo


Opinião - Visões da Crise

Fora das instituições, o mundo fica muito pior

Protestos foram motor de mudanças marcantes na história política, para o bem e para o mal. Com muito custo tornaram-se uma liberdade constitucional. Por certo, uma das mais incômodas liberdades, pois mantêm autoridades sob estresse, desestabilizam consensos, escancaram dissensos e produzem a energia vital sem a qual a democracia não se critica nem se reinventa.

Seus limites, por essa mesma razão, estão em permanente renegociação. Numa sociedade formada por experiências oligárquicas e autoritárias como a nossa, é uma liberdade distribuída desigualmente, uma verdade extraoficial que políticos evitam reconhecer. De Dilma a Alckmin, de Aécio a Lula, de Cunha a Renan, dentro das atribuições que têm ou tiveram, pouco foi feito para transformar essa realidade.

O protesto de hoje é seguro, pois tem o privilégio de não contar com a antipatia policial. Não haverá, salvo imprevisto, bala de borracha, gás lacrimogêneo ou detenção para averiguação, velhas rotinas da cultura policial (como em tantas cidades do país nos últimos anos). Rotinas ilegais toleradas por crônica indiferença governamental e social.

Editoria de arte/Folhapress

As condições privilegiadas, por si sós, não tornam o protesto menos legítimo. Entretanto, ter e praticar um direito não isenta ninguém de responsabilidade. Quem protesta (ou não protesta) tem contas a prestar ao menos com sua consciência.

Ainda que, do ponto de vista jurídico, não precisemos explicar por que exercemos um dado direito numa dada conjuntura, cidadãos têm o ônus de justificar suas escolhas cívicas. Poderão ser interpelados moralmente por sua ação ou omissão. Democracias funcionam melhor quando se compreende a sutil relação entre liberdade e responsabilidade.

Os grupos que prometem ir hoje às ruas têm propostas razoavelmente diversas para um Brasil em crise. Compartilham, porém, um objetivo: a saída imediata da presidente da República, seja pelo impeachment, pela renúncia, ou, na versão mais extravagante, pela convocação de novas eleições. Aos que se consideram politicamente sensatos e que ainda se dão o benefício da dúvida, é sobre isso que devemos conversar –crises, instituições e ritos constitucionais.

Crises, conforme a sabedoria convencional, têm uma ambiguidade fundamental: insinuam-se, ao mesmo tempo, como ameaça e oportunidade; podem deteriorar relações sociais e desacreditar instituições em bom funcionamento, mas oferecem uma chance para mexer em estruturas profundas que os tempos de normalidade não conseguem.

Agravar a crise é estratégico para os que almejam assumir o poder por vias extra-institucionais. Mas equacioná-la pode dar continuidade ao fato institucional mais promissor da democracia brasileira em muitos anos: o combate à corrupção pela ação independente e coordenada de instituições como a Polícia Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Instituições servem para amortecer conflitos e facilitar decisões. O respeito a elas não é fetiche, mas uma apólice de seguro político que permite a convivência não violenta entre adversários. Fora delas, o mundo fica muito pior. Defender a saída de Dilma neste momento, com raiva e convicção, mas sem evidências jurídicas, é, no mínimo, queimar a largada. Propor novas eleições, então, é pura tentação de poder à margem da legalidade.

O compromisso com a ética do protesto supõe alguns deveres, entre eles o de informar-se sobre fatos, normas e interesses, com clareza do alvo, dos riscos e das consequências dos seus atos. Tão importante quanto se perguntar quem eventualmente perde com o aprofundamento da crise, é saber quem ganha. Quem não se faz seriamente essa pergunta pode acordar e descobrir que dormiu com o inimigo.

CONRADO HÜBNER MENDES é professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP


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