Folha de S. Paulo


Minha História: Comissário luta para provar inocência em voo sequestrado

RESUMO- José Omar de Morais, 74, foi comissário da empresa de aviação Cruzeiro do Sul. Estava no voo 114 do Caravelle, sequestrado por quase 72 horas em janeiro de 1970 por seis militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) para levar a Cuba a professora Marília Guimarães.

Interrogado sob suspeita de proteger os guerrilheiros e de integrar o grupo, Morais nunca mais arrumou emprego numa empresa aérea.

Pedro Kirilos/Agência O Globo
José Omar Morais Sampaio, 74, comissário que estava em voo sequestrado da Cruzeiro do Sul em 1970
José Omar Morais Sampaio, 74, comissário que estava em voo sequestrado da Cruzeiro do Sul em 1970

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Não sei por que estou sem resposta há 40 anos. Talvez porque um dos envolvidos no sequestro foi marido da presidente da República? [Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, primeiro marido de Dilma Rousseff] Ou seria uma tentativa de preservar a Aeronáutica? Não sei. Sempre tentaram me envolver nesse episódio, mas nunca fui terrorista ou sequestrei avião.

Tudo começou na manhã de domingo, dia 1º de janeiro de 1970. Naquele Réveillon, estava em casa no Rio, de sobreaviso para qualquer eventualidade.

Quando o telefone tocou, soube que um Caravelle [avião usado pela Cruzeiro do Sul com capacidade para aproximadamente 90 passageiros] havia quebrado no aeroporto de Montevidéu. Fui escalado na equipe que iria até lá para trazer passageiros de volta ao Brasil.

Por volta das 17h, chegamos a Montevidéu. Pouco tempo depois, iniciamos o embarque. Vinte e sete passageiros entraram na aeronave. Entre eles, os seis guerrilheiros, que se espalharam em diferentes pontos do avião.

O plano de voo previa escalas em Porto Alegre, São Paulo e, finalmente, no Rio. Só que, quatro minutos após a decolagem, fomos rendidos pelos sequestradores. Eles queriam ir para Cuba.

A primeira exigência foi não sobrevoar o território brasileiro. Temiam que o avião fosse abatido. Só que não havia combustível para chegar a Havana. Foi preciso parar em quatro países durante a viagem. Eu e outro tripulante [Hélio Borges] éramos os únicos autorizados a descer da aeronave para pegar comida e abastecer o avião.

Na primeira parada, em Buenos Aires, dois passageiros foram liberados por problemas cardíacos. No Aeroporto de Lima, um militar americano chegou a me oferecer uma pistola. Disse: 'Entre no avião e atire em quantos conseguir. Nós entramos atrás e matamos os outros'.

Perguntei a ele: 'Como isso seria possível?' Eles não sabiam quem eram os sequestradores. Iriam matar todo mundo. Fui treinado para salvar vidas, e não para tirá-las.

Depois de dois dias, chegamos a Havana. Passei a ser tratado como prisioneiro até voltar ao Brasil.

No retorno, já em Manaus, teve início o inquérito que, para mim, ainda dura até hoje. Nunca fui preso, mas o que passo é pior.

Em uma ocasião, fui chamado para prestar depoimento no quartel da Urca [zona sul do Rio]. Fiquei sentado por cinco horas numa sala cheia de objetos de tortura. Depois, me chamaram para conversar. Dá para imaginar como eu estava naquele momento.

Até o sequestro do Caravelle, eu era considerado um profissional de ponta. Fazia voos internacionais. Depois, passei a ser escalado em rotas pelo interior do país, em horários péssimos. Coisa que ninguém queria.

Acabei demitido em 1972. Fiz entrevistas em outras empresas e nada. Nunca mais consegui emprego como comissário de bordo.

Editoria de arte/Folhapress

Talvez achassem que eu tinha ligação com os sequestradores que militavam em Belo Horizonte. E eu era de Barbacena. Sei lá. Imagino tudo e tento entender por que não me deram informações sobre essa investigação. Fui tratado como um culpado.

Recorri à Lei da Anistia para tentar provar que fui alvo de perseguição e nada. Disseram que, como fui demitido dois anos depois do sequestro, isso não configura perseguição.

Me aposentei com um salário mínimo, depois de passar anos contribuindo com remunerações mais elevadas. Moro de favor na casa da minha irmã. Só tenho meu telefone e meu cigarrinho.

Tentei ter acesso ao inquérito militar, mas não consegui. Queria ajuda da Comissão Nacional da Verdade. Não sei se meu caso chegou até eles. Nunca me chamaram para conversar.

Espero, de algum jeito, ter uma resposta antes de morrer. Gostaria de conseguir isso. Essa situação toda me fere muito. Por que não mereço uma resposta?


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