Folha de S. Paulo


Apesar dos avanços vindos da política, eleitor alterna indiferença e irritação

Três décadas após a mais expressiva manifestação por participação política na história do Brasil —a campanha Diretas Já e, na sequência, a posse do primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura—, o país chega a 2015 com o recorde de partidos políticos com representação no Congresso. Vinte e oito.

O que poderia ser um sinal de riqueza e diversidade ideológica, porém, tem sido percebido como o oposto disso. Tornou-se comum a reclamação de que parece cada vez mais difícil identificar diferenças entre uma sigla e outra.

Na chamada geleia geral, as mensagens são sempre muito parecidas, o troca-troca é aceito como algo da natureza, rivais de ontem são os aliados de hoje e vice-versa.

Em parte como fruto desses padrões de comportamento, pesquisas mostram crescente distanciamento das pessoas em relação à política tradicional. No último Datafolha, em fevereiro, 71% dos eleitores disseram não ter nenhuma preferência partidária. É o pico da série do instituto com essa pergunta, feita desde 1989. Aumento de votos brancos e nulos e abstenções apontam para a mesma direção.

Não consta que esse distanciamento afete a própria imagem da democracia. O mesmo Datafolha tem mostrado que a preferência pelo regime democrático também tem batido recordes quando os eleitores são confrontados com a possibilidade de uma ditadura (confira ao lado).

Editoria de Arte/Folhapress

Seria precipitado dizer, portanto, que a democracia está ameaçada ou que os brasileiros desistiram da participação. Junho de 2013 sugere o contrário.

Mas sobram indícios de que, após 30 anos de redemocratização —em um período com inegáveis avanços sociais advindos da política— muitos deixaram de reconhecer a política tradicional como o meio adequado para encaminhar e resolver seus problemas. Uma crise de confiança? De representação?

O filósofo Marcos Nobre acha que sim. E atribui essa crise, "bastante brasileira", ressalta, ao que ele chama de "caráter conservador da nossa redemocratização".

"A história da redemocratização é uma história de evitar a todo custo o embate público aberto em torno das questões mais fundamentais da vida política", diz. "Um arranjo para bloquear o quanto possível a emergência dos conflitos e das diferenças."

Uma constatação objetiva disso, cita, é o abismo que há anos se estabelece entre as eleições presidenciais e as bancadas de situação e de oposição no Congresso.

"Quem vence a eleição presidencial, não importa o partido, constrói uma base esmagadora no Congresso e isola a oposição. O último exemplo foi o de 2014. Aécio Neves e Marina Silva tiveram em torno de 55% dos votos no primeiro turno. Onde está a bancada de oposição que corresponde a essa votação?"

Na sua avaliação, essa é uma das explicações para o "empobrecimento" da disputa política. "A oposição migra para dentro da base do governo e passa a se expressar em fraturas dessa base. Assim, as disputas realmente importantes saem da esfera pública e são levadas para o âmbito da luta de bastidores."

A formação de enormes bases tampouco parece estar funcionando. Levantamento do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) mostra que em 2014, ano da reeleição, a presidente Dilma Rousseff viu a disciplina de sua base atingir o ponto mais baixo desde a chegada do PT ao poder. Deputados das nove siglas da coalizão votaram só 66% das vezes como orientados pelo líder governista.

DESCONFORTO

Provocado a refletir sobre essa crise de confiança 30 anos após a redemocratização, o sociólogo Brasilio Sallum Jr. chama a atenção para a forte mudança da sociedade brasileira, com a assimilação de direitos inimagináveis em 1985.

"É o processo de conscientização dos que não estão no poder", diz. "Aqueles direitos que não existiam nos anos 80 e foram incorporados na Constituição estão sendo absorvidos. Isso faz enorme diferença. Agora as pessoas sabem que têm direitos e, com razão, querem esse atendimento. Como não recebem a contento, surge a irritação, o desconforto. Então estamos com um regime que funciona, é estável, mas não satisfaz."

Sallum destaca ainda o que ele chama de forte desequilíbrio nas relações entre Executivo e Legislativo. O primeiro tem autorização para mandar medidas provisórias de forma ilimitada ao Congresso. O segundo, diz, tem muito poder decorrente da prerrogativa de derrubar essas medidas, mas baixa capacidade de produzir legislações que resulte em políticas públicas.

"É a fórmula para o amesquinhamento do parlamentar: ele pode barrar coisas importantes, mas não consegue legislar de verdade; fica o tempo todo só discutindo a pauta enviada pelo governo", diz.

"Uma reforma política deveria focar prioritariamente nisso. Mas esse tema não tem sido tratado. Discutem ajustes no sistema eleitoral, que podem até ajudar, mas não o problema essencial".

Alguns estudiosos discordam da predominante visão pessimista sobre o funcionamento do sistema político gestado nos últimos 30 anos.

O pesquisador Carlos Pereira é um deles. No lugar de crise de representação, Pereira prefere falar em crise de identificação: "Acho o sistema brasileiro hiper-representativo. Ruim seria se alguém não se sentisse incluído. Mas não tem interesse da sociedade fora do regime político".

O problema, diz, é o da dificuldade do eleitor "em lidar com tantas ofertas no mercado político", ideia que remete à critica da geleia geral, unânime nas análises.

Reformas limitadas à correção de distorções pontuais, segundo Pereira, seriam suficientes. Na sua lista estão o combate ao encarecimento das eleições, medidas que sirvam de prevenção à corrupção e o fim de coligações em eleições proporcionais para deputado e vereador.

Democracia, 30 anos; Crédito Editoria de Arte/Folhapress


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