Folha de S. Paulo


Questões de Ordem: Contas feitas

Para quem esperava penas rigorosíssimas, de preferência a cadeira elétrica para os principais acusados, o final do julgamento do mensalão foi um bocado decepcionante, ou ao menos anticlimático.

Verdade que as decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (inocentando José Dirceu do crime de quadrilha e livrando João Paulo Cunha do de lavagem de dinheiro) não podem ser consideradas absurdas.

Deixemos de lado a polêmica, já bastante explorada, do conceito de "quadrilha" –no qual o senso comum e a definição jurídica parecem ir em direções opostas. Não é despropositado dizer que, quando a mulher de um corrupto saca o dinheiro da corrupção no banco e o leva para casa, seria forçado considerar que houve lavagem.

Com paciência, o ministro Marco Aurélio Mello leu o texto que define o crime. Trata-se de "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade" do dinheiro ou dos bens resultantes de atividade criminosa. João Paulo Cunha não elaborou nenhuma ficção, do tipo bilhete premiado na loteria, para justificar seus proventos. Simplesmente abocanhou-os, com a intermediação da própria esposa.

O plenário, graças à nova maioria composta por Teori Zavascki e Luís Roberto Barroso, aceitou as teses da defesa. Nada de especial a reclamar quanto a isso.

Do mesmo modo que muita gente reclama da brandura dos novos ministros, no campo oposto existe quem continua afirmando que todo o julgamento foi político, e que José Dirceu, Genoino e Pizzolato nada fizeram de errado.

No fundo, a primeira lição que se tira de todo o processo é que tudo depende, sempre, do entendimento de cada juiz. Há quem se convença, e quem não se convença, das provas apresentadas contra José Dirceu. Foram suficientes para alguns, não foram para outros.

O que não dá para acreditar é na tese de que o STF "inventou" teorias novas para condenar esses acusados em particular. A famosa tese do "domínio do fato" não foi um expediente para condenar José Dirceu sem provas.

Houve provas, só que não tão fortes como uma gravação telefônica ou uma filmagem com câmera escondida. Testemunhas confirmaram o papel de Dirceu no esquema, confirmou-se a existência de reuniões entre Dirceu e Marcos Valério.

Podem não ter sido para tratar de nenhum crime, podem ter sido apenas para conversar sobre o mundo. Mas o célebre princípio da "presunção de inocência" tem seus limites –um deles é o grau de credulidade ou de burrice do juiz encarregado de examinar o caso.

Por outro lado, o Ministério Público deixou passar os favores recebidos pela ex-esposa de José Dirceu, que seriam capazes de embasar uma condenação do ex-ministro por outro crime, o de corrupção passiva.

Julgamento "político"? Como dizer isso, se Gushiken foi inocentado e se Lula sequer foi acusado pelo Ministério Público?

Feitas as contas, mesmos os ministros mais favoráveis aos acusados foram capazes de condenar Pizzolato e Genoino. Feitas as contas, foram altíssimas as penas contra alguns acusados, em especial os banqueiros. Feitas as contas, e esta é uma última surpresa para tantos que acompanharam o julgamento, mesmo quem amargou 20 e tantos anos de prisão pode livrar-se em pouco tempo.

Entende-se, assim, a vontade punitiva de Joaquim Barbosa e outros que seguiram na sua linha. Há tantos meios de diminuir o tempo de cadeia, que a severidade de seus julgamentos resulta mais aparente do que real.

Não poderia ser muito diferente. Tudo nesse julgamento –queiramos ou não– foi feito de acordo com a lei, e com as interpretações que os ministros têm o dever e o direito de seguir.

Foi pela lei que o julgamento demorou absurdamente. Foi pela lei que se deu o paradoxo de um mesmo tribunal ser encarregado de fazer a revisão dos próprios julgamentos (o caso dos embargos infringentes). Foi pela lei –pelas muitas leis– que as penas para corrupção terminam menos graves do que as de lavagem de dinheiro.

Pressão da "mídia conservadora"? Quem reclama disso ignora voluntariamente a tese contrária, segundo a qual Barroso e Zavascki foram sensíveis à pressão de quem os nomeou. Partes da opinião pública pressionaram claramente Celso de Mello para que ele não aceitasse os últimos recursos da defesa. Ele –que queria a condenação dos envolvidos por quadrilha– aceitou os embargos infringentes, que inocentaram os mensaleiros dessa acusação.

A Justiça, com falhas e erros, funcionou. Nenhum dos ministros estará plenamente contente com o resultado a que se chegou no plenário; bom sinal.

Funcionará no futuro? O julgamento servirá para alguma coisa? Pessoalmente, tenho muitas dúvidas. Mas a sociedade mudou suas expectativas com relação ao papel do Supremo; de algum modo, concordando ou não com o veredito, entendeu-se mais sua importância, sua lógica própria, sua independência.


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