Folha de S. Paulo


Bolsa Família só dá autonomia a uma parte das mulheres inscritas, diz pesquisador

Interessado em estudar o impacto do Bolsa Família nas relações de poder entre homens e mulheres, o antropólogo norte-americano Gregory Duff Morton morou durante dois anos numa das regiões mais pobres do sertão da Bahia.

O objeto de pesquisa de seu doutorado na Universidade de Chicago (EUA) são as quase cem famílias com as quais conviveu no assentamento Maracujá e no povoado Rio Branco, agrupamentos vizinhos na zona rural do município de Vitória da Conquista.

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Logo na chegada, em 2010, Morton fez um recenseamento dos 308 moradores locais. Ao aplicar um questionário adaptado da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) nas 98 residências das duas áreas --quase todas assistidas pelo Bolsa Família--, notou uma "surpreendente desigualdade" entre os pobres inscritos no programa.

Essa diferença, descobriu depois, exerce influência determinante nas relações de poder entre o homem e a mulher no interior de cada residência. Fazendo visitas e entrevistas semanais, Morton percebeu que a tão propagandeada autonomia das mulheres inscritas no Bolsa Família só ocorre em parte das famílias assistidas pelo programa. Ela é real, diz, mas apenas no grupo das famílias tidas como "mais prósperas" da comunidade.

Arquivo pessoal/Folhapress
O antropólogo americano Gregory Duff Morton na zona rural de Vitória da Conquista (BA), onde estudou o impacto do programa Bolsa Família
O antropólogo americano Gregory Duff Morton na zona rural de Vitória da Conquista (BA), onde estudou o impacto do programa

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Leia abaixo entrevista com o antropólogo americano Gregory Duff Morton

FOLHA - Como surgiu seu interesse pelo Brasil?
GREGORY DUFF MORTON - No final dos anos 90, fiquei interessado pelo Brasil porque, para mim, parecia um país de muitas carências. Eu via o Brasil como um exemplo de país que estava com grandes problemas. Então eu queria entender isso. A questão dos sem-terra, principalmente, foi de grande interesse para mim no início. Então comecei a aprender português, estudei a história do Brasil, e acabei viajando várias vezes para o Brasil no início dos anos 2000. E o que encontrei foi o contrário. Eu não encontrei um país problemático. Eu via uma transformação social acontecendo. Voltei várias vezes, em 2005, 2007, 2008. E vi as famílias sem comida, depois com comida. Sem geladeira, depois com geladeira. As crianças crescendo e melhorando. Então percebi que, de fato, a sociedade brasileira estava se transformando. Então fiquei muito curioso para entender como estava acontecendo essa transformação tão importante.

Por que escolheu a região pobre de Vitória da Conquista (BA)? Como foi parar lá?
Foi engraçado. Eu queria conhecer o movimento dos sem terra, né? Mas não conhecia ninguém no Brasil, ninguém na América do Sul. Estava morando nos Estados Unidos, trabalhando numa clínica para doentes mentais. Então resolvi deixar o trabalho e ir para o Brasil. Fui parar em São Paulo, entrei na secretaria do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e conversei com um militante. Ele perguntou qual era a região do Brasil que eu queria conhecer. Eu falei: "qualquer lugar". Aí ele disse: "olha, quando eu fui conhecer o movimento dos sem terra, eu fui para a Bahia; e aí me casei na Bahia, então vou levar você para lá". Ele me mandou para a Bahia, mas eu não me casei (risos).

Foi para Salvador?
Sim. Quando cheguei em Salvador, os militantes sem terra não sabiam o que fazer comigo. Aí eu disse que trabalhava com saúde mental nos Estados Unidos. Então eles disseram que estavam fazendo um curso sobre saúde para os assentados e os acampados de Vitória da Conquista. Então foi por acaso. Eles me mandaram para o curso e lá eu morei uns três meses dentro do assentamento. Acabei fazendo amizades e desenvolvi os vínculos que tenho até hoje.

Somando as várias viagens, quanto tempo você morou nessa região?
Desde 2005 eu visito o acampamento [Maracujá] e o povoado [Rio Branco] em Vitória da Conquista. São oito anos. Os períodos em que eu morei lá somam mais de dois anos. Mas o estudo do Bolsa Família começou em 2010. Como foco no Bolsa Família, são três anos de estudo.

Chegando de longe, sem vínculo com ninguém e falando inglês, como foi recepcionado pelos moradores?
A zona rural da Bahia é o lugar mais acolhedor que eu conheci no mundo. Aliás, são muitos os viajantes que falam a mesma coisa. Agora, eu acho que o fato de ser bem recebido também acaba influenciando a perspectiva que você tem. Você acaba endividado. De certa forma, eu hoje me sinto endividado como estrangeiro e isso vai impactando a pesquisa. Eu acho que sou, de uma certa forma, mais... Eu tenho uma ótica mais voltada para o melhoramento do Bolsa Família justamente porque as pessoas que me acolheram são as pessoas que recebem o Bolsa Família. De uma certa forma, procuro defender os interesses deles. Mas ao mesmo tempo eu sou pesquisador, então também preciso ter uma, uma...

Isenção
É, você entendeu.

Sua pesquisa fala em grande desigualdade entre beneficiários do Bolsa Família. Ficou surpreso com isso?
Sim, fiquei bastante surpreso com a desigualdade, principalmente com a diferença entre as desigualdades no assentamento [Maracujá] e no povoado [Rio Branco]. Uma das características mais marcantes do povoado é que a desigualdade é mais aliviada, pois lá é um lugar onde a maioria das pessoas tem algum vínculo de parentesco. Essas relações de parentesco, de redistribuição de riqueza, acabam amenizando a desigualdade no povoado. Já no assentamento, uma comunidade mais nova, ainda não existe esse processo redistributivo. Mas quero destacar esse ponto: muitas pessoas acreditam que todos que recebem o Bolsa Família são iguais. Isso não é verdade, de jeito nenhum.

Como é a desigualdade entre os beneficiários?
As famílias mais pobres acabam gastando todo o dinheiro do Bolsa Família com as necessidades mais básicas da vida: alimentação, cadernos para a escola, roupa básica e, às vezes, calçado para as crianças. Só isso. O dinheiro só dá para isso. Nas famílias mais pobres, o recurso é temporário. Entra na casa e logo sai para as necessidades mais fundamentais. Nas famílias que têm uma outra fonte de renda e uma certa prosperidade, o dinheiro é usado para criar formas de permanência.

O que é isso?
Uma mesa, um guarda-roupa, um tanque para lavar a roupa, um fogão. Agora, existe um instrumento que permite a criação dessa permanência: a prestação. Mesmo com o Bolsa Família, essas famílias mais prósperas não teriam condição nenhuma de comprar nada de permanente sem o uso do crédito. A expansão da rede de prestação na zona rural tem sido fundamental para essas famílias. Então uma família que antigamente nem sonhava com um fogão a gás, hoje está podendo tirar R$ 20 por mês do Bolsa Família para pagar o fogão.

Essa desigualdade é nitidamente percebida pelas famílias?
Sim, claramente. Tem um depoimento muito bonito que colhi que traduz isso muito bem. No estudo, ela aparece com o nome fictício de Nicola [37 anos, cinco filhos, que passou a receber R$ 174 por mês]. Vou ler para você: "Comprei o colchão e o guarda-roupinha para elas pôr roupa. E para mim é uma bênção. E se eu não tivesse esse emprego na escola, era com esse dinheiro [do Bolsa Família] que eu estava comendo. Eu e esses cinco filhos que eu tenho dentro de casa." Então ela percebe nitidamente a diferença. Antes, ela estava usando o dinheiro do Bolsa Família só para comer. Agora que conseguiu um bico numa escola, virou merendeira, um bico temporário, ela está podendo usar o Bolsa Família para comprar colchão e guarda-roupa.

A desigualdade gera algum tipo de discriminação entre grupos de beneficiários na mesma comunidade?
Com certeza existe. Na zona rural, essa discriminação acaba se misturando com a fama geral da família. Há certas famílias que são vistas como as mais respeitáveis. De forma geral, são famílias que recebem bem, que sabem fazer festa, tudo isso. E também são essas as famílias mais prósperas. De forma geral, são percebidas como as lideranças da comunidade. Se empobrecer, perde todo esse respeito, acaba caindo no conceito da comunidade.

E qual é o impacto da desigualdade na questão do gênero, da relação da homem com a mulher?
É só nas famílias mais prósperas que o Bolsa Família acaba fortalecendo a posição da mulher. Nas famílias mais pobres, isso não acontece, o dinheiro é visto como um recurso coletivo.

Como assim?
O discurso de autonomia feminina é muito mais frequente nas famílias mais prósperas. Nessas famílias, acontece uma divisão da renda. O dinheiro do Bolsa Família vai para a mulher; as plantações na roça ou o trabalho de diarista geram uma renda que vai para o homem. Agora, há casos em que as mulheres também trabalham e aí o dinheiro do trabalho também fica com ela. Mas essa divisão só acontece com os mais prósperos. Nas famílias mais pobres, não importa a origem da renda, tudo é gasto com o mais básico.

Então a mulher só tem autonomia quando o dinheiro é dividido?
O que importa de fato não é a divisão do orçamento. O que importa é a capacidade de gerar formas de permanência dentro do domicílio. É isso que realmente tem impacto nas relações de poder. É a mulher poder dizer "essa geladeira é minha", "eu comprei essa geladeira", "essas três cabeças de gado são minhas". Isso vai impactar a sua capacidade de influenciar nas decisões do domicílio. E é por isso também que o Salário Maternidade é tão fundamental. Ele é diferente do Bolsa Família nesse aspecto. É que mesmo nas famílias mais pobres, o Salário Maternidade permite a aquisição de valores permanentes pela mulher. Uma mulher que recebe o Salário Maternidade pode comprar uma vaca, pode comprar uma geladeira. Então ele permite uma mudança no jogo, transforma as relações de poder dentro da família, coisa que, nas famílias mais pobres, não acontece nem com o Bolsa Família. O Salário Maternidade transforma mais rapidamente as relações de poder e transforma até nas famílias mais pobres.

O Salário Maternidade não é permanente como o Bolsa Família, a mulher só recebe quando está grávida. Tem todo esse impacto?
A quantia é grande. O procedimento [para conseguir os recursos] é burocrático, mas, com tudo comprovado, a mulher tira quatro salários mínimos por gravidez. Então as famílias procuram transformar esse dinheiro numa fonte de renda permanente, principalmente a compra de gados. Quando isso acontece, a vaca vai ser a vaca de alguém. No caso, vai ser da mulher. Aí isso acaba mudando a dinâmica de poder dentro de casa. Mas é um benefício difícil de receber por causa da burocracia. Lá [em Vitória da Conquista], só 25% das mulheres que estão nas condições conseguem receber.

Qual são os riscos associados ao desconhecimento da desigualdade entre os inscritos no Bolsa Família?
Tem um aspecto importante. Quanto mais o governo vai colocando critérios para tentar dificultar o acesso ao Bolsa Família, mais os excluídos acabam sendo os mais pobres. Ou seja: às vezes, quando percebem um quadro com diversidade econômica [no programa], dizem assim: "Vamos cortar os mais prósperos, vamos cortar os mais ricos, vamos exigir mais provas para excluir as pessoas que já têm uma certa condição de vida". Mas o que acontece? Quando a gente impõe critérios mais rígidos, a gente acaba excluindo os mais pobres. E por quê? Porque justamente são os mais pobres que têm as maiores dificuldades administrativas, que não têm uma boa leitura, que não sabem viajar até a cidade. Então esse é um dos dados mais importantes que eu achei. Entre os mais pobres, o acesso é mais limitado. São eles os que têm maior dificuldade para interagir com os aspectos burocráticos do programa.

Mas o governo não está colocando mais exigências. As mudanças que se tem notícia foram para facilitar o acesso, incluir adolescentes, aumentar o benefício. Não foi isso?
Até hoje os critérios seguem sendo bastante abertos. E o governo Dilma [Rousseff] está tentando fazer um processo de busca ativa para incluir os mais excluídos. Mas esse processo não está bom. Não teve um êxito total. Por exemplo: em Vitória da Conquista, até hoje parte das pessoas cadastradas não está recebendo os benefícios. São 10 mil famílias sem receber, pois o município já atingiu seu limite. Isso ocorre em muitos outros municípios, cada um tem um limite. Então tem 10 mil na lista de espera. Eles se encaixam nos critérios do programa, mas ficam esperando disponibilidade de uma vaga.

Isso é assim desde o início. Não foi uma barreira colocada durante o andamento do programa que acabou excluindo os mais pobres.
Que eu saiba, o governo federal até hoje não colocou critérios mais rigorosos. Mas acontece que, em certos municípios, os governantes locais estão exigindo processos mais burocráticos para a concessão do benefício. Em Vitória da Conquista, para receber o Bolsa Família você precisa fazer três consultas na Secretaria de Desenvolvimento Social do município. Esse procedimento é complicado para quem mora na zona rural. As pessoas que moram nos povoados que eu pesquisei estão a cerca de 100 quilômetros do centro da cidade. Cada visita [ao centro da cidade] custa R$ 20. Para quem está vivendo com R$ 100 mensais, gastar R$ 20 três vezes é muito complicado. Então é esse tipo de obstáculo que está impedindo o acesso dos mais pobres.

Antes o município não exigia três visitas?
Exatamente. São [necessárias] três visitas [à Secretaria de Desenvolvimento Social] a cada dois anos. O município mudou várias vezes esse sistema. Antes eram dias abertos de cadastro, a pessoa tinha um intervalo para ir. Mas eu quero colocar bem claramente que essa parte da administração do programa varia muito de município para município. Está muito na mão do gestor municipal.

A gestão compartilhada com os municípios costuma ser elogiada.
Eu acho que a autonomia dos municípios tem sido um fato positivo do Bolsa Família de forma geral. Os municípios realmente abraçaram o programa. Agora, na minha visão, o que falta é a questão da responsabilidade para a chegada dos recursos a tempo. Às vezes os recursos atrasam dois, três meses. Quando chegam, a pessoa não recebe aqueles três meses que faltaram. Acaba perdendo. Da mesma forma, quando acontece qualquer transtorno, a pessoa não tem direito a receber o pagamento atrasado. Isso acontece muito. Quase metade das famílias que eu entrevistei passou por esse processo: o dinheiro é cortado porque ficou faltando um documento, porque teve um erro burocrático qualquer. Quando a família finalmente consegue resolver o problema, não recebe o atrasado. Um dos casos que acompanhei demorou 11 meses para resolver. E os documentos estavam entregues desde o início, depois foram encontrados. Mas essa família ficou 11 meses sem o benefício. O município deveria se responsabilizar.

Numa família muito pobre, o que significa autonomia da mulher?
Ah, que boa pergunta. Na minha visão, autonomia, nesse contexto, nunca é independência. Não significa que ela vai viver só, tomar decisões sem consultar os demais. Autonomia, na minha visão, é um discurso no qual a mulher pode se entender como origem de uma decisão. Quando você pergunta "como isso aconteceu?", a mulher autônoma pode dizer: "Fui eu que decidi", "eu que participei dessa decisão", "eu que queria doar a vaca para o meu filho", "eu que queria comprar a casa nova". É um discurso de responsabilidade para decisões.

Você fala muito de vaca. É tão frequente assim o uso do Bolsa Família para a compra de gado?
A vaca é o banco da zona rural, vamos dizer (risos). O sertanejo brasileiro trabalha bastante com gado. E a vaca também é a forma máxima de valor. Claro que uns trabalham com porcos, outros com galinhas. Mas a vaca é o mais valioso. Com vaca, você comprova que você é poderoso.

Na região que você morou, quantas famílias tinham alguma vaca?
Ah, eu contei, viu? Não tenho os dados aqui, infelizmente... Mas eu diria que mais da metade possui gado. A maioria tem uma vaca, duas vacas. A família da comunidade com mais vacas chega a ter 20, cerca de 20. Mas essas são as mais ricas. Quem tem 20 vacas já não recebe Bolsa Família.

No período, você viu alguma família sair do programa porque conseguiu melhorar de vida? Não estou falando de problemas de cadastro. Quero saber de casos em que o Bolsa Família atingiu seu objetivo e deixou de ser necessário.
Vi sim. Claro que não acontece todo dia. Na minha visão, o fato principal é a educação. Quem consegue completar o ensino médio, em muitos casos também consegue deixar o Bolsa Família. O filho faz o ensino médio e forma família própria sem depender mais do Bolsa Família. Eu conheci uma família de muita inspiração para mim, uma mulher que terminou o ensino médio com 25 anos. Ela aproveitou o recurso do Bolsa Família para poder estudar, para não precisar trabalhar. Estudou, fechou o ensino médio, arrumou um emprego como secretária e agora não precisa mais do Bolsa Família.

Alguns dizem que o Bolsa Família pode ser um "incentivo da preguiça", que ao receber o benefício, o sujeito perde o interesse em trabalhar, progredir. Há esse conformismo? Ou as famílias almejam não depender do programa?
Olha, eu nunca vi preguiça. Todo mundo que recebe o Bolsa Família entende que o benefício é temporário. Isso é universal. Todos dizem que esse programa vai terminar um dia, e todos têm medo do fim do programa. Então ninguém vê como um recurso permanente. Agora, o Bolsa Família permite um melhor aproveitamento do capital humano. A pessoa que está trabalhando como diarista não está aproveitando ao máximo o potencial que tem. Essa pessoa, por meio do Bolsa Família, pode deixar de trabalhar por um tempo para poder estudar. Foi o caso de Fernanda, que eu citei. Deixou de trabalhar, estudou, se formou e agora é secretária. Ela conseguiu aproveitar o capital humano. Há outros casos de pessoas que conseguem deixar empregos ruins para buscar outros melhores. Se você recebe R$ 20 por dia, você fala para o patrão: "Olha, eu não vou mais trabalhar por R$ 20 por dia, isso é um absurdo, então eu vou deixar esse emprego e vou procurar outro". É o Bolsa Família que possibilita esse processo. Agora, é claro que, para quem é conservador, isso parece um absurdo: "Ah, o pobre está se achando, ele pensa que pode ganhar mais salário". Mas essa ótica é perversa. Ocorre o contrário. O trabalhador [que faz isso] está conseguindo se valorizar, está deixando um emprego que não está valorizando seu capital humano e buscando outras oportunidades. O resultado final é positivo para o trabalhador e para a economia como um todo, pois ele está procurando oportunidades mais produtivas. Além de tudo, a quantia do Bolsa Família é muito baixa. Até nas famílias mais pobres, sempre há uma outra fonte de renda. Ninguém passa um ano só com o Bolsa Família.

Em maio ocorreu aquela corrida às agências da Caixa Econômica Federal, quebra-quebra, muita gente achando que o programa iria acabar. O que ocorreu, na sua opinião?
Na minha visão, há um fator fundamental naquela confusão: o Bolsa Família não é um direito, é um programa social. Esse fato provoca ansiedade. As pessoas que recebem Bolsa Família sabem muito claramente que o programa pode acabar a qualquer momento. Não existe uma garantia. E essa ansiedade pode explodir. Foi o que aconteceu em maio, explodiu. Qualquer faísca se transforma num incêndio por causa dessa insegurança. Uma mulher me disse uma vez uma frase que resume bem essa realidade. Deixe-me ler para você... "A aposentadoria é um dinheiro certinho, que é só você chegar lá e pegar. O Bolsa Família não é. Eu mesma saí daqui para pegar o meu, cheguei lá e não estava". É isso que acontece. As pessoas entendem claramente a diferença entre aposentadoria, um direito na Constituição, e o Bolsa Família, um programa social. Qualquer coisa, o programa acaba. A gente nunca viu um quebra-quebra pela aposentadoria, pois as pessoas acreditam que a aposentadoria vai ficar.

Para alguns analistas, o Bolsa Família pode ter sabotado a capacidade de mobilização do MST. Concorda com isso?
Acabei de escrever um artigo sobre isso. Eu acho que o Bolsa Família pode contribuir para a desmobilização, mas também pode contribuir para a mobilização. O programa pode facilitar o protesto. Uma família que recebe o Bolsa Família tem mais condições de ficar numa ocupação de terra e sobreviver com uma postura de resistência. Na minha opinião, o mais fundamental nessa questão é que o MST não conseguiu entender e responder à transformação social do governo Dilma. Dilma está cada vez mais focando nos programas. E isso já vem de antes, do [ex-presidente] Lula. O governo federal está criando vínculos diretos com os mais pobres. Há 20 anos, essas pessoas não tinham vínculo com o governo federal. Tinham com o prefeito e, às vezes, com o governo estadual. Com o federal era muito precário. Agora, com os recursos de informática, há vínculo direto com os mais pobres. A pessoa tem um cartãozinho no bolso que é sua conexão com Dilma. Eu acho que o MST não conseguiu responder a essa nova realidade. Então o MST tem de tomar uma decisão: se vai abranger essa questão do Bolsa Família, dos direitos sociais universais, se vai apoiar.

O Bolsa Família está fazendo dez anos. Em síntese, qual é o seu balanço?
Queria dizer que o Bolsa Família é um dos programas sociais mais importantes do mundo no momento atual. Está sendo alvo de pesquisas mundiais e é uma inspiração para muitos outros programas. Existem vários programas de transferência de renda no mundo, mais de 50. Todos os países latinos têm um programa de transferência de renda, menos Cuba. Por que o Bolsa Família é importante? Primeiro porque é o maior do mundo. Segundo porque tem uma estrutura muito progressista, muito boa. O fator principal é a autodeclaração de renda, que muitos não entendem. Você declara sua renda sem precisar comprovar essa renda num primeiro momento. Isso é fundamental. Em muitos outros países, no Chile, por exemplo, os programas exigem uma série de provas que precisam ser apresentadas antes da concessão do benefício, o que complica muito a situação da pessoa necessitada. Aí, em muitos casos, as pessoas mais necessitadas acabam sem receber o benefício. Também é importante a universalidade do Bolsa Família, pois foi implantado em todos os municípios. No México, por exemplo, não foi assim. E ainda o fato de o programa ficar disponível mesmo depois da maioridade. Quando o filho completa 18 anos, a família pode continuar recebendo uma quantia; uma quantia menor, mas importante para a família. Além disso, não existe um limite de tempo, ao contrário de outros que só valem por dois anos. É tudo isso que, de fato, faz com que o Bolsa Família ajude de verdade os mais pobres.

Qual é o exemplo contrário?
Um exemplo contrário, na minha opinião, é o do Chile, que tem o programa Chile Solidário. É muito limitado, as famílias são excluídas depois de uma visita ao domicílio por uma assistente social, a quantia do benefício é muito pequena, o benefício é limitado a dois anos. É o inverso do Bolsa Família, que é muito progressista. O Chile tem o programa mais limitado e de orientação mais conservadora. E o Chile não conseguiu os mesmos resultados do Brasil.


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