Folha de S. Paulo


Análise: 25 anos entre mitos e realidades

A Constituição chega à data comemorativa dos 25 anos, representados, em conhecida simbologia, como "bodas de prata", bodas desse difícil casamento ocorrido entre um texto de Lei e os valores fundamentais de uma sociedade. E é inevitável a seguinte pergunta: a união está ainda de pé?

A Constituição importa como vivência, não como letra fria de lei, indiferente a tudo e distante da sociedade. Expectativas reais são inevitáveis e devem ser contabilizadas em todo balanço --sempre provisório-- que se queira fazer sobre um texto normativo. Adoto uma visão dinâmica desses textos, pois qualquer Constituição é sempre um processo em aberto. Estamos em permanente teste de consolidação constitucional, o que envolve dúvidas, disputas, frustrações e, claro, vitórias.

Lembro-me que logo em sua primeira infância nossa Constituição enfrentou a grave acusação pública de que tornaria o País ingovernável. O mito da ingovernabilidade, com conteúdo de compromisso ideológico, foi derrubado pela firmeza de um texto preocupado e, por isso mesmo, muito detalhado, com uma sociedade carente de Constituição e, nessa medida, consciente, sim, de seu alcance, como documento transformador de uma realidade contra-democrática que se queria superar definitivamente.

Mas ao longo destes anos, esse mito parece ter permanecido insistentemente entre nós, e foi adquirindo outro colorido. A Constituição passou a ser culpada por algumas das principais mazelas da sociedade brasileira, como a falta de direitos mínimos (como acesso à água) em determinadas regiões, para citar um exemplo.

Movimentos contrários à vitória social da Constituição, que adiavam constantemente o cumprimento de suas regras, utilizavam de sua própria torpeza para denunciar o que seria a fraqueza da Constituição. Mas uma Constituição democrática jamais poderia ser fraca sem que isso representasse um certo paradoxo; a fraqueza está nos governantes que cochilam para abandonar os desejos (metas) constitucionais. A tese da Constituição-eterna-promessa vai sendo superada pelo slogan "aplicação já", que aliás advém da própria Constituição.

Vale lembrar que recentes manifestações sociais no Brasil só foram possíveis porque estamos em um ambiente constitucional seguro; ilegítimas são as atitudes de parcela de uma polícia despreparada para muita democracia, que promove a insegurança pública a valor máximo.

Em sua caminhada, somaram-se muitos direitos à Constituição, não apenas numericamente, via emendas constitucionais. A evolução foi qualitativa, pois direitos passaram a pautar a conduta dos agentes públicos no cotidiano de nossas vidas. O "emendismo", contudo, foi além de aspectos positivos, tornando sempre mais complexo o trabalho de reagrupar a Constituição retalhada, e de evitar sua captura por grupos de interesses inconfessáveis.

Poderia somar, aqui, inúmeras outras ocorrências, de leituras ofensivas e parasitárias de nossa Constituição, de verdadeiros mitos superados. Mas o balanço não se altera: temos o tempo fortificando a Constituição, não como mitificação de um texto, mas como fortalecimento da própria sociedade da qual é o resultado (constituinte), para a qual se dirige (transformadora) e com a qual é construída (Constituição como experiência), diariamente. Nesses termos aquela delicada união se mantém e se renova, pela própria sociedade.

ANDRÉ RAMOS TAVARES é professor de Direito Constitucional da PUC-SP e do Mackenzie.


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