Folha de S. Paulo


Para juiz que defende reforma política, sistema eleitoral tem defeitos 'imperdoáveis'

O juiz Márlon Reis, especialista em legislação eleitoral que tem militado pela aprovação de uma reforma política imediata, afirma que o sistema eleitoral brasileiro tem defeitos "imperdoáveis".

Entre os mais graves, na sua opinião, está a possibilidade de um candidato muito votado carregar um mal votado para o parlamento, o "gigantesco" número de concorrentes e o financiamento majoritariamente empresarial das campanhas.

Pai do projeto de iniciativa popular que reuniu 1,3 milhão de assinaturas e resultou na Lei da Ficha Limpa em 2009, Reis tenta agora juntar 1,6 milhão de autógrafos (o equivalente a 1% do eleitorado) a favor de propostas como financiamento público de campanha e eleição em dois turnos para o Legislativo.

Até a noite de sábado, o movimento 'Eleições Limpas' havia coletado 159 mil assinaturas em seu site, outras 162 mil por meio do portal Avaaz (especializado em campanhas) e um número ainda desconhecido por meio de formulários impressos.

Nesta entrevista, Márlon Reis discute as deficiências do atual sistema eleitoral brasileiro, conhecido como proporcional aberto, e rebate as críticas às propostas contidas no projeto de lei que ajudou a elaborar.

Folha - Quem estuda sistema eleitoral diz que não há modelo perfeito de votação. Ao tentar corrigir alguns problemas, não há o risco de criar outros?

Márlon Reis - O caso é que o sistema atual tem defeitos imperdoáveis. Os outros têm defeitos que são justificáveis. O problema desse nosso modelo é que ele gera situações absurdas. Falhas grosseiras mesmo. A mais séria delas está na imprevisibilidade do resultado. O eleitor não tem o domínio da opção política. Porque, além da opção dele, ele tem de contar com fatos que fogem à sua vontade. Exemplo: o eleitor vota em alguém de algum partido, mas para esse candidato ser eleito é preciso que ele seja, também, o mais votado do partido ou da coligação pela qual ele concorre. Esse segundo aspecto não está sob controle do eleitor. Se outro membro do partido tem mais votos, o seu voto passa a ser contabilizado a favor do outro. Isso é imperdoável. Para mim, flerta com a inconstitucionalidade. Os outros sistemas, qualquer outro, o distrital misto, o voto em lista, não tem esse defeito. O eleitor votou e aquilo vai gerar um impacto X. Pode ser até que ele não consiga o resultado esperado, mas o inesperado não acontecerá. É esse defeito que gera aquele vício de votar em um e eleger outro, o efeito Tiririca, que arrasta outros. Uma lista fechada pode ter vários defeitos, mas ela é clara: você vai votar nesse grupo, mas sabe que seu voto vai levar outros. No modelo que vigora, você não sabe quem será levado.

E o segundo maior defeito, na sua opinião?

O grande número de candidatos competindo entre si pelo voto dentro do partido ou coligação. A competição interna entre um grande número de candidatos gera o esfacelamento do partido como instância de ação coletiva. Na verdade, o partido é hoje pouco mais que uma obrigação burocrática decorrente da exigência constitucional de estar vinculado a um partido para disputar.

Achei que o senhor iria falar do financiamento.

Não consigo dizer que o financiamento é o problema mais grave. O financiamento e o sistema de votação são igualmente graves. São problemas seríssimos. Eu não conseguiria estabelecer uma ordem hierárquica entre eles. Porque se você só mudar o modelo de financiamento sem mudar o sistema, permanecem os problemas graves e incontornáveis como esses que já mencionei. Agora, o problema do financiamento é muito sério. Há uma necessidade urgente de se retirar o financiamento empresarial. Eu não me filio à tese de que as empresas, por qualquer hipótese, devem estar afastadas da possibilidade de doações. O problema é o que isso se tornou no Brasil. E é tão grave que se tornou num problema de impacto antiempresarial. É um elemento que é inimigo do empreendedorismo. Algo que era para integrar as empresas no debate político se transformou num elemento de exclusão. Porque é um número ínfimo de empresas que realmente investem nesse segmento. E isso faz com que todas as demais, as que não podem ou não querem participar, sejam alijadas da possibilidade concreta de firmar contratos públicos importantes. Então esse modelo impede o empreendedorismo, dificulta o livre mercado. Os empresários que não participam desse modelo não podem disputar em condições de igualdade os contratos.

Poder, pode. Como não? Em tese, todos podem.

Não. Mas não acontece. Em tese podem. Mas o que acontece é que as empresas que participam de campanha definem até mesmo para onde vai o orçamento [público]. Elas ajudam a pensar a própria existência dos contratos, o que faz com que elas estejam muito mais preparadas, com antecedência, para enfrentar o processo licitatório. As outras são pegas de surpresa, enquanto elas, junto com o governo, definem para onde vai a verba.

É uma acusação grave isso que o senhor está falando.

Não, não. Eu não estou falando, não. Existe pesquisa acadêmica demonstrando como isso funciona. Para cada R$ 1 doado, R$ 8,50 retornam para as empresas que financiam campanha. É uma pesquisa do Instituto Hellen Kellog, da Universidade do Texas. Tem muitas outras.

Vocês estão propondo sistema de votação para o parlamento em dois turnos. Como seria isso?

O eleitor vai ver uma campanha de primeiro turno entre partidos. Ele irá para a urna votar exclusivamente numa sigla. Com isso, ele definirá o número de cadeiras que cada partido terá. Votar no primeiro turno significa dizer: "eu entendo que esse partido é o que está melhor preparado para ocupar assentos no parlamento". Depois, no segundo turno, o eleitor volta à urna para encontrar uma lista de candidatos geral, não só do partido que ele voltou, mas uma lista de nomes correspondente ao dobro do número de cadeiras em disputa. Numa Assembleia Legislativa de 50 membros, por exemplo, ele irá encontrar 100 pessoas. O eleitor poderá votar em qualquer uma delas, independentemente do partido. É o que chamamos de etapa de controle social dos eleitos, o que não existe no sistema de lista fechada. Então a primeira etapa é de definição da proporcionalidade partidária; a segunda é de controle social dos eleitos. É quando o eleitor define que personalidade irá, que personalidade não irá.

Então, se quiser, o eleitor poderá votar num partido no primeiro turno e no candidato de um outro partido no segundo turno?

Pode. Isso é importante. A ação do parlamentar afeta indistintamente a todos. O controle é geral. O resultado final da lista será decorrente da manifestação de todos.

Uma hipótese matemática: um partido pode ter zero voto no segundo turno e eleger 20 deputados. É isso?

É... em tese é possível. Quem definiu que esse partido terá 20 deputados? O voto no primeiro turno.

Pensando do ponto de vista do candidato, esse modelo não poderá potencializar aquela concorrência interna nociva que o senhor citou no início? Pelo modelo que vocês estão propondo, o único objetivo do candidato que vai para o segundo turno será derrotar os outros candidatos do seu próprio partido. Para ele, será muito mais interessante que o eleitor vote num adversário de outro partido do que num colega de seu partido.

Não. O modelo reduz drasticamente isso [a competição interna], a começar porque reduz o número de competidores internos. Haverá apenas um número reduzido, não gigantesco como hoje, de gente disputando os votos. Haverá, sim, um certo nível de competição interna. Mas nós consideramos esse nível de competição salutar, porque a única maneira de impedir essa competição interna no sistema proporcional é a lista fechada; mas aí você retiraria o controle do eleitor. Quando se vê da perspectiva do candidato, ele é um sistema que vai gerar um novo comportamento político. Pode acontecer, sim, distorções. É aquilo que você afirmou no começo: em todos os sistemas haverá fragilidades. O que acontece é que nós construímos um modelo que parte do sistema proporcional, porque não temos esperança que alguém consiga mudar a Constituição. Mas [fizemos o projeto] pensando na realidade constitucional, nos valores que queremos afirmar, na importância de as pessoas observarem em que partidos estão votando, no controle social sobre os eleitos. Isso vai gerar novos desafios políticos.

Que outros desafios dá para imaginar?

Eu já ouvi políticos falarem que pode haver campanha de alguns partidos [no segundo turno] para influir quem vai ser eleito no outro partido. A resposta que damos é a seguinte: isso vai fazer com que os partidos tenham a necessidade de escolher listas de pessoas que representam a sua ideologia partidária. Exemplo: se um partido de inclinação ambientalista tem quatro pessoas que vão para o segundo turno e todas elas têm essa sintonia [com o tema ambiental], o partido estará contemplado com qualquer um que for eleito. Então isso vai aumentar o dever do partido de pensar muito bem os nomes que escolhe, pois ele não terá a palavra final sobre quem vai ser eleito. Quem vai ter é o eleitor.

Pode ser um risco para parlamentares que representam minorias, não? Um deputado da causa gay, por exemplo, poderá sofrer campanha negativa de religiosos no segundo turno. Ele nunca será eleito justamente porque representa uma minoria.

Isso vai acontecer também com os grosseiramente corruptos. Hoje não é possível para o eleitor fazer absolutamente nada se tiver um número de pessoas que vota nele [no notoriamente corrupto], mesmo sendo ele uma figura escandalosa. Nesse modelo novo, o eleitor poderá votar para impedir que ele vá. Isso são as características do crivo democrático. Um partido que tenha interesse em afirmar minorias construirá sua lista entre pessoas defensoras dessas minorias. Com isso, não é a pessoa que irá defender a causa, mas um grupo de pessoas. É esse o novo universo que estamos propondo para o Brasil. Hoje é tudo fulanizado: esse político defende isso, esse defende aquilo. O que estamos propondo é que os partidos assumam esses compromissos. Então vai ser menos relevante quem vai ser eleito.

Quem elaborou esse modelo que está no projeto de lei?

Esse modelo foi desenvolvido pelo Edson de Resende Castro, que é coordenador das promotorias eleitorais de Minas Gerais, Marcelo Roseno, que é juiz de direito no Cerá, e eu. Os três somos todos estudiosos e autores de obras publicadas sobre direito eleitoral. Nós nos debruçamos por quase dois anos sobre a necessidade de construir um modelo compatível com a Constituição, para facilitar a aprovação por lei ordinária, e que retirasse aqueles defeitos que eu falei no começo. É uma invenção? É uma inovação, claro. Mas não parte do zero. Parte do sistema atual. O que nós fizemos foi fazer um corte cirúrgico. Hoje, o voto é dado ao mesmo tempo no partido e na pessoa. É isso que gera o descontrole, a falta de previsibilidade. Nós separamos isso em duas etapas. O voto no segundo turno, aliás, é majoritário.

O senhor já criticou o voto em lista fechada, que é defendido pelo PT. E o voto distrital, como quer o PSDB?

O distrital, na minha avaliação, não tem a menor possibilidade de ser adotado no Brasil nos próximos anos. O problema é que precisa alterar a Constituição, precisa de aprovação de três quintos do Congresso. Então para nós esse debate está simplesmente descartado. O Congresso não consegue votar nem lei ordinária sobre questão eleitoral. Então é um muro intransponível. Mas eu também vejo muitos problemas práticos na implantação do voto distrital. A começar por quem vai definir e como serão definidos os distritos. Porque o desenho do distrito define quem será o eleito. Então na hora de definir os distritos haveria um impacto enorme. Eu afirmo que não há diálogo político interpartidário suficiente para chegar em consensos sobre isso. Então é um debate infrutífero.

Vocês dizem que esse modelo eleitoral que está sendo proposto seria mais barato. Mas no caso das eleições municipais, o país passaria a ter que fazer eleição de vereador em dois turnos em 5.564 municípios. Até os municípios nanicos teriam dois turnos. Como pode ser mais barato?

Barateia. Não é o que parece. Olha só: as eleições em Minas Gerais em 2010 tiveram dois turnos em todos os municípios, porque era presidencial e de governador, e custaram R$ 29 milhões [para a Justiça Eleitoral]. Já as eleições municipais de 2012 em Minas, com segundo turno em só cinco municípios, custaram R$ 49 milhões. Por que? O aumento do custo de pessoal nas eleições municipais é incrivelmente maior. E isso tem relação com o número expressivo de candidatos. Agora, a verba de custeio, infraestrutura, logística, muda pouco com um ou dois turnos. O valor para fazer segundo turno é meramente residual. A urna já saiu da capital e já foi mandada para a cidade pequena, o custo de logística já foi feito, o mesário já foi treinado. O aumento da logística é de 12%, mas [com o novo modelo] haveria uma economia impressionante no custo de pessoal. Então o custo geral das eleições seria reduzido. Pode parecer paradoxal, mas podemos mostrar isso matematicamente. A variável que mais impacta nos custos não é o número de turnos, mas o número de candidatos.

O projeto diz que a lista de candidatos que cada partido assegurará "a proporcionalidade mínima de dois candidatos de um gênero para um de outro, em sucessivo, até não poder ser apresentado novo grupo de três que respeita-a proporção e a ordem". O que isso significa?

Hoje já tem cota de gênero de candidatura de 30%. Então colocamos de uma forma para respeitar isso, na proporção de 2 para 1. Assim não será possível para o partido formar uma lista só de homens ou só de mulheres. É uma maneira de não haver retrocesso.

Muita gente coloca em dúvida a questão do financiamento público. Hoje não há incentivo para o candidato fazer caixa dois, afinal ele pode arrecadar e registrar o quanto quiser. No modelo que vocês estão propondo de financiamento majoritariamente público, com teto para doações privadas, o caixa dois não poderá aumentar? Como o senhor responde?

Se isso fosse assim, a liberalidade total de hoje já teria eliminado o caixa dois. Mas tem. E não é pouco, você sabe disso. É falso imaginar que o sistema eleitoral influencia isso. O que reduz o caixa dois é o controle social e a transparência. O que colocamos no projeto para reduzir o caixa dois é a obrigatoriedade de prestação de contas on-line. Se o eleitor nota um gasto estranho, pode ir imediatamente na internet verificar se aquilo está declarado. A conta da campanha será em tempo real. Também [propomos] a punição criminal contra caixa dois, que não existe hoje. Aliás, isso é até usado pela defesa de quem é acusado, que alega recursos não contabilizados. Poderá ter caixa dois, como tem hoje, mas o que combate caixa dois é o controle institucional e o controle social.


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