Folha de S. Paulo


Buscar a reinterpretação da Lei da Anistia é obrigação moral, diz procurador

A revisão da interpretação da Lei da Anistia pelo STF (Supremo Tribunal Federal) deverá ser uma das prioridades do próximo chefe do Ministério Público, afirmou nesta sexta-feira (9) o procurador federal dos Direitos do Cidadão, Aurélio Veiga Rios.

"É uma obrigação moral do próximo procurador-geral da República, numa nova composição do STF, buscar uma nova interpretação da Lei da Anistia para que se possa buscar a justiça em cada caso", disse o procurador.

O atual procurador-geral, Roberto Gurgel, deixará o cargo no próximo dia 15, mas seu substituto ainda não foi nomeado pela presidente Dilma Rousseff. Ela deverá fazer a escolha a partir da lista tríplice formada por Rodrigo Janot, Deborah Duprat e Ela Wiecko.

Para Rios, não é preciso revogar a Lei da Anistia para que agentes do Estado acusados de violação aos direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985) sejam julgados e punidos.

"Há uma possibilidade de interpretá-la de modo que, quando houver provas de que determinada pessoa que era agente do Estado cometeu determinado crime, que ele possa responder por isso. Se ele for considerado inocente, que seja absolvido. Se for culpado, que seja condenado", disse.

Editoria de Arte/Folhapress

Em 2010, ao analisar uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil, o Supremo confirmou que agentes do Estado que cometeram violações aos direitos humanos, como tortura e desaparecimento forçado, estão protegidos pela Lei da Anistia.

Em decisão do mesmo ano, porém, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos), condenou o Estado brasileiro a punir os responsáveis pelo desaparecimento de 62 pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia (1972-1974).

Os que defendem a revisão da Lei da Anistia argumentam que a decisão da corte internacional significa que a Lei da Anistia não pode impedir a apuração, o julgamento e a condenação de agentes do Estado por crimes de violações de direitos humanos durante a ditadura.

"O que nós estamos defendendo é o fim da impunidade de pessoas que cometeram crimes bárbaros, extremamente violentos, e sob o cobertor do Estado", disse Rios.

A declaração de Rios foi dada durante evento de lançamento do site do projeto Brasil Nunca Mais Digital, que disponibiliza na internet 710 processos de réus políticos que passaram pelo STM (Superior Tribunal Militar) de 1964 a 1979.

O apelo por uma nova interpretação da Lei da Anistia foi repetido por vários participantes do evento. O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, afirmou que o conteúdo do "Brasil Nunca Mais" permite uma "segunda chance" de se fazer justiça com relação aos crimes da ditadura. "A contundência de um relatório da sistematização dessas violações é capaz de gerar um ambiente necessário para que nós possamos superar a impunidade", disse.

Já a deputada Luiza Erundina disse é preciso ir além da revelação da verdade e do resgate da memória desses fatos. "A redemocratização não se completará enquanto não se atingir esses objetivos: o resgate pleno da memória, a revelação inteira da verdade histórica daquele período e justiça, o julgamento e a punição dos que, em nome do Estado, cometeram aqueles graves crimes de lesa humanidade."

O senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) ressaltou, porém, que foi a Lei da Anistia que "permitiu a redemocratização do país". "Não posso subestimar a importância da Lei da Anistia. Foi uma negociação política que faz parte da história brasileira e o resultado disso foi altamente positivo, permitiu a volta dos exilados, a abertura das cadeias e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte."

Participantes do evento também criticaram a atuação da Polícia Militar, que afirmam trazer resquícios da ditadura, e citaram episódios como a repressão violenta às manifestações populares de junho e o desaparecimento do pedreiro Amarildo, no mês passado, após comparecer a uma Unidade de Polícia Pacificadora na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

"Nós precisamos produzir verdade, memória, justiça, e também a reforma do aparato estatal que ainda age no mesmo molde que atuava na ditadura", afirmou o procurador regional da República Marlon Weichert.

"BRASIL NUNCA MAIS"

O projeto "Brasil Nunca Mais" foi resultado de uma força-tarefa realizada de 1979 a 1985 por advogados, jornalistas e pesquisadores que, clandestinamente, copiaram processos contra réus políticos que estavam no STM (Superior Tribunal Miliar). Tudo sob a coordenação de dom Paulo Evaristo Arns e do reverendo James Wright.

Advogados usavam o prazo de 24 horas para consultar os processos e fizeram as cópias, que eram microfilmadas. O acervo em papel foi para a Unicamp, e os microfilmes enviados ao exterior. O projeto também resultou no livro "Brasil Nunca Mais".

Ao perceber que o acervo da Unicamp estava deteriorado e ter dificuldades para acessar os originais no STM, o procurador regional da República Marlon Weichert teve a ideia de resgatar os microfilmes e digitalizá-los.

Para Weichert, os processos agora digitalizados e disponíveis na internet, inclusive com ferramenta de busca avançada, servirão como subsídio para ações civis e pedidos de reparação de vítimas da ditadura ou mesmo ações criminais do Ministério Público contra agentes repressores.

"São documentos oficiais que retratam o molde de operação da própria repressão. Eles podem ser extremamente relevantes para comprovar que já naquele tempo havia denúncias. Por exemplo, uma pessoa que identifica um torturador, poderá identificar em que outros processos essa pessoa também foi identificada, ou seja, reforçando a sua prova individual com provas de outros casos", disse o procurador.

A coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, Rosa Cardoso, disse que os documentos, que já eram de conhecimento dos membros do grupo, poderão agora ser estudados mais minuciosamente e servirão de referência para a elaboração do relatório final do colegiado, em que se pretende esclarecer os casos de mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar.


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