Folha de S. Paulo


Análise: Pontífice ensaia autocrítica eclesial

Sem falar explicitamente em casos como o da pedofilia de clérigos católicos ou do encastelamento da hierarquia eclesiástica, o papa Francisco fez uma sutil autocrítica institucional da igreja durante sua exposição sobre o significado da Via Sacra no final da tarde desta sexta-feira (26), na praia de Copacabana, na zona sul do Rio.

Enumerando situações nas quais o martírio de Cristo leva o conforto aos fiéis, citou aqueles "que perderam a fé na igreja, e até mesmo em Deus, pela incoerência de cristãos e de ministros do Evangelho".

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Eles faziam companhia àqueles que passam fome "num mundo que todos os dias joga fora toneladas de comida", aos que são perseguidos pela cor da pele, religião ou ideias, e àqueles que perderam a confiança na política devido à corrupção e o egoísmo.

Não é exatamente uma contrição pública, e a rigor é válida para pregadores de qualquer denominação cristã, mas foi a primeira citação de Francisco a falhas da igreja na Jornada Mundial da Juventude.

Os casos de pedofilia na igreja começaram a ser denunciados sistematicamente no papado de João Paulo 2º, numa crise que estourou nos anos 2000 e atravessou o reinado de Bento 16.

Ambos, em especial o pontífice polonês, são acusados de leniência e acobertamento do problema --o alemão, ao menos, foi mais incisivo no fim de seu papado em denunciar o crime. Especialistas consideram a crise moral decorrente das denúncias um dos motivos da sangria acentuada de fiéis em países desenvolvidos.

Francisco tomou uma atitude mais enérgica no começo deste mês, ao criminalizar o abuso sexual de menores na lei do Vaticano --a cidade-Estado tem legislação própria.

Além disso, Francisco é um crítico do que considera alheamento do clero em relação aos fiéis desde que era cardeal Bergoglio, usando transporte público em Buenos Aires.

Sempre usou metáforas como a necessidade do pastor de estar próximo do "cheiro das ovelhas", e tem repetidamente feito gestos simbólicos nesse sentido, que para críticos denotam populismo: recusou o apartamento papal, é despojado nas vestimentas e faz questão do contato com o público.

A fala do pontífice, em espanhol intercalado por português e "portunhol", fez uma reflexão do sentido da via crúcis encenada em Copacabana. O martírio de Jesus é central para a narrativa da religião, e novamente Francisco recorreu a uma história tirada da tradição popular cristã para ilustrar seu discurso.

Dos "Atos de Pedro", ele pinçou o episódio no qual o apóstolo Pedro foge da perseguição em Roma e encontra com Jesus, já morto, no caminho. Respondendo ao famoso "Quo vadis?" (para onde vais, em latim, frase alçada ao título de um clássico do cinema), Jesus disse: "Vou a Roma para ser crucificado de novo".

Francisco com isso fala do exemplo aos fiéis, da união do salvador com o sofrimento de seu rebanho. Segundo os "Atos", Pedro então voltou a Roma e acabou crucificado de ponta-cabeça, um relato apócrifo --ou seja, que não está na Bíblia oficial.

Mais cedo, na oração do Ângelus, Francisco havia recorrido à história também apócrifa dos avós maternos de Jesus, ao falar sobre a celebração do dia de Santana, por extensão o Dia das Avós.

Os dois casos mostram a distância de Francisco do rigor de Bento 16, um dos maiores teólogos vivos, que não perdia a chance de fazer uma citação erudita para tentar fazer passar sua mensagem.


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