Folha de S. Paulo


Justiça de transição priorizou indenizações, mas não a reconciliação, diz historiadora

A justiça de transição no Brasil, como é chamada a passagem do regime ditatorial para a democracia, priorizou a indenização das vítimas, mas não foi suficiente para revelar as verdades e promover a justiça, afirma a historiadora Maria Paula Araujo.

Maria Paula é uma das organizadoras e coautora do livro "Violência na História: Memória, Trauma e Reparação" (Editora Ponteio, R$ 54, 284 págs.), que será lançado nesta terça-feira (2) em São Paulo.

"A justiça de transição no Brasil deu ênfase à questão da reparação, em detrimento de outros aspectos, como a verdade e a justiça; e uma reparação com um forte cunho indenizatório. Mas, apesar do esforço da Comissão de Anistia, este processo de reparação não foi suficiente para revelar a verdade (ou as verdades), promover justiça e permitir uma reconciliação nacional", escreve no livro a professora de história contemporânea da UFRJ.

A obra traz discussões sobre a chamada justiça de transição, detalhando como ela ocorreu em países como Israel, África do Sul, El Salvador e no Cone Sul, e o papel dos comitês de memória, verdade e justiça na transição política.

Entre os autores, há nomes como o do ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, a cientista política e professora da PUC-Rio Maria Celina D'Araújo e o secretário nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão.

Apesar de os autores buscarem trazer o tema para a realidade do Brasil, há uma lacuna no caso brasileiro. O livro reúne textos apresentados no seminário "Memória, Trauma e Reparação", organizado pelo programa de pós-graduação em história social da UFRJ em maio de 2012, ou seja, no momento em que a Comissão Nacional da Verdade ainda estava em fase de nomeação de seus membros.

Segundo Maria Paula, o Brasil ainda precisa passar por duas etapas essenciais para concluir sua transição de regimes: a nomeação dos responsáveis pelos crimes cometidos na ditadura militar (1964-1985) e o reconhecimento, por parte das Forças Armadas, de que a tortura foi largamente praticada no país.

"Em alguns casos, simplesmente a nomeação [dos culpados] já é uma punição. O que tem que ser criminalizado é a prática da tortura e haver publicamente uma condenação dessas práticas", disse ela em entrevista à Folha.

A historiadora cita o exemplo da Comissão de Verdade e de Reconciliação, convocada pelo governo de Nelson Mandela na África da Sul em 1995, após o fim do apartheid. Naquele país, a anistia foi concedida de forma individualizada a quem assumiu seus crimes e pediu perdão.

O modelo difere do que ocorre no Brasil, onde a Lei da Anistia, de 1979, concedeu o perdão de forma ampla e generalizada, sem a necessidade de responsabilização individual pelos crimes.

Para o historiador Carlos Fico, também coautor do livro, a transição política no Brasil, além de inconclusa, é marcada pela impunidade e pela frustração. "A lei de 1979, que beneficiou oposicionistas mas também foi uma autoanistia, tornou-se a principal cláusula da transição democrática dos anos 1980 e consagrou a impunidade", afirma em trecho do livro.

Ele ressalta, ainda, a falta do reconhecimento dos erros por parte dos responsáveis pelos crimes da ditadura. "Até hoje, vivemos a bizarra situação de o Estado ter assumido, timidamente embora, suas responsabilidades em relação à ditadura militar --através dessas comissões--, mas, ao contrário, as Forças Armadas persistem em não reconhecer os erros que cometeram no passado."

COMISSÃO DA VERDADE

Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, que assina a orelha do livro, a justiça de transição passa por três fases: a compensação das vítimas, a revelação da verdade dos fatos e a justiça para os culpados.

O Brasil, afirma ele, começou seu processo com a compensação das vítimas em 2001, com a criação da Comissão de Anistia. Apenas agora, com a Comissão Nacional da Verdade, criada no ano passado para esclarecer as graves violações de direitos humanos, enfrenta a revelação da verdade dos fatos.

"Mesmo que se supere essa segunda fase, imensos obstáculos, gerados por interesse de uns e desinteresse de outros, já têm sido e serão ainda levantados ao enfrentamento da terceira dimensão, a justiça, ou retribuição."

Maria Paula Araujo destaca que a Comissão Nacional da Verdade tem uma característica que a diferencia de outros países, que é o fato de ter surgido quase 30 anos após o fim do regime repressivo.

Portanto, disse ela, neste momento, a comissão deveria se concentrar em casos mais emblemáticos --como o desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva e a Guerrilha do Araguaia-- e divulgá-los imediatamente.

A falta de divulgação dos resultados já obtidos pela Comissão Nacional da Verdade é uma das críticas de vítimas da ditadura e de seus familiares e motivou, na semana passada, um pedido de audiência com a presidente Dilma Rousseff.

Maria Paula afirma ainda que é difícil fazer uma avaliação do trabalho que a comissão vem desenvolvendo desde sua criação justamente pela falta de divulgação dos resultados já obtidos, mas diz acreditar que o colegiado está fazendo um trabalho "possível e correto".

O lançamento do livro "Violência na História" terá a participação dos presidentes das comissões estadual e municipal da verdade, deputado Adriano Diogo (PT) e vereador Gilberto Natalini (PV), do presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Antonio Funari Filho, de Ivo Herzog, filho do jornalista morto no DOI-Codi de São Paulo, Vladimir Herzog, entre outros.

"VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA: MEMÓRIA, TRAUMA E REPARAÇÃO"
ORGANIZADORES Carlos Fico, Maria Paula Araujo e Monica Grin
AUTOR Vários
EDITORA Ponteio
QUANTO R$ 54 (284 págs.)
LANÇAMENTO hoje, a partir das 19h, no Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo (r. Genebra, 25, Bela Vista)


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