Folha de S. Paulo


Análise: Recuo de Dilma expõe dificuldade do governo

Durou menos de 24 horas na sala o bode plantado pela presidente Dilma Rousseff ao ressuscitar a tese de uma constituinte específica para fazer a reforma política.

A proposta em si teria dificuldades para vingar, já que é vista em vários gabinetes do Supremo Tribunal Federal como inconstitucional, mas o fato é que ela gerou um incêndio entre seus aliados que o governo agora busca apagar. O problema não acaba aqui: o governo precisará explicar às "ruas" sua posição, e o Congresso se vê com a obrigação de dar respostas também.

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Coube ao ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) um tremendo malabarismo verbal para dizer que não houve recuo. Disse que Dilma nunca propôs uma constituinte, mas sim um "processo constituinte", e que segue com a ideia de um plebiscito.

Cardozo não explicou, porém, plebiscito para quê exatamente --já que a ideia de Dilma era convocar a população a decidir se o Congresso deveria ou não fazer a constituinte. Na mesa estão perguntas específicas sobre pontos da reforma política, como o voto distrital misto. Cabe, contudo, ao governo apenas sugerir os tópicos, já que a atribuição de elaborar a cédula do plebiscito é do Parlamento.

O vaivém demonstra a dificuldade do momento para o governo. Depois do discurso generalista da sexta passada, a presidente apostou mais alto e envolveu o Congresso e "o povo" diretamente no seu pacote de "pactos" para tentar amainar a crise.

Só que a forma autocrática com que o pacote foi amarrada incomodou muita gente. Nem o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP), segundo informou hoje o Painel da Folha, foi avisado da proposta da constituinte --e ele é contra a medida.

Líderes aliados foram pegos de surpresa, e o comando do Congresso (Renan Calheiros e Henrique Eduardo Alves, ambos do PMDB) ontem ficou mudo. Reuniões ocorreram e reações chegaram aos ouvidos do Planalto.

A oposição, que apontava viés bolivariano no plebiscito, poderá comemorar a mudança de tom do governo, ao menos até ver exatamente o que será colocado como proposta no lugar da constituinte.

Afinal de contas, Luiz Inácio Lula da Silva sempre elogiou o que considerava a pujança democrática da Venezuela devido ao número de "eleições" vencidas pelo já morto Hugo Chávez --e boa parte delas eram justamente plebiscitos que usavam a "vontade do povo" como massa de manobra para legitimação do regime.

Mas nem tudo é vitória para os incomodados pelo bode dilmista. Com ou sem constituinte, de toda forma, o Congresso está exposto. A reforma política, até pela "inclusão do povo" por meio de um indefinível plebiscito, agora estará na pauta dos manifestantes. Não é por acaso que a Câmara convocou um mutirão para tentar votar ainda hoje temas centrais da pauta das manifestações, como a PEC 37 e a destinação dos royalties do petróleo.

E amanhã há atos marcados em todo o Brasil, inclusive na frente do Parlamento. Será um termômetro para ver o impacto da confusão para o governo e para os parlamentares..

Há outros pontos a analisar. Se a centralização da decisão da presidente foi maior, fica claro também que ela reativou o antigo "núcleo duro" do Planalto à sua maneira. Aloizio Mercadante pode ser ministro da Educação, mas ontem falou e agiu como primeiro-ministro --ou, para ficar na figura brasileira, um chefe forte da Casa Civil.

Sintomático foi ver Mercadante explicando detalhadamente os tais pactos de Dilma, com Gleisi Hoffmann servindo de coadjuvante. Por outro lado, é sabido que egos sem coleira não têm sobrevida longa no convívio com a presidente.

Além disso, governadores e prefeitos sentaram à mesa ontem e tiveram de ouvir um discurso pronto --unindo ideias práticas (desoneração para o diesel), enrolações ("grupos de trabalho"), propostas fantasiosas (R$ 50 bilhões para transporte) e tergiversações (importação de médicos).

A opinião deles, e a lavagem de roupa suja, só foi exposta com as câmeras desligadas. Se todos os ressentimentos que esse tipo de comportamento tende a gerar vão florescer e conturbar de vez o cenário para o pleito de 2014, dificultando o projeto reeleitoral de Dilma, essa é uma questão em aberto.


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