Folha de S. Paulo


É impossível democracia sem passar torturas a limpo, diz vítima da ditadura

Com depoimentos contundentes à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, a cineasta Lucia Murat e a historiadora Dulce Pandolfi defenderam a apuração rigorosa dos crimes cometidos durante a ditadura militar.

As duas relataram em detalhes as torturas que sofreram naquele período diante da plateia presente no plenário da Assembleia Legislativa do Rio, local escolhido para a primeira sessão da comissão regional.

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Rafael Andrade - 23.jan.2008/Folhapress
Cineasta Lucia Murat no Rio
Cineasta Lucia Murat no Rio

"É impossível ter um país democrático, solidário e justo, sem passar isso a limpo", disse Dulce Pandolfi, que destacou o fato de a tortura não ser apenas uma prática clandestina. "O 'x' da questão é: a tortura era uma política de Estado no regime militar."

Lucia Murat falou sobre a importância de responsabilizar os torturadores daquele período.

"Não tenho nenhum desejo de vingança. Mas essas pessoas precisam ser descobertas e responder diante da sociedade pelo que foi feito", afirmou Lucia.

A cineasta dimensionou a dificuldade de relembrar as torturas: "Se a gente não fala sobre isso, não consegue sobreviver. Ao mesmo tempo, se a gente só fala sobre isso, também não sobrevive. O desafio é lidar com essa história sem perder a perspectiva de que ela precisa ser denunciada, mas sabendo que essas lembranças não podem tomar conta da sua vida."

Os relatos da violência sofrida por ambas em interrogatórios comoveram a plateia presente.

Em um trecho de seu depoimento, Lucia descreveu a tortura sofrida na prisão: "De um momento para outro, estava nua apanhando no chão. Logo em seguida, começaram com os choques. Amarraram a ponta de um dos fios (elétricos) no dedo do meu pé enquanto a outra ficava passeando (atingindo com choques diversas partes do corpo). Quando começaram a jogar água, estava desesperada e achei num primeiro momento que seria para aliviar a dor. Mas os choques recomeçavam muito mais fortes. Percebi que a água era para aumentar a força dos choques."

Dulce Pandolfi lembrou que chegou a ser usada como cobaia em uma aula de tortura no DOI-Codi: "Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal pau de arara, ouvi o professor dizer: 'essa é a técnica mais eficaz'. Acho que comecei a passar mal, a aula foi interrompida e fui levada para a cela. Alguns minutos depois, vários oficiais entraram na cela e pediram ao médico para medir minha pressão. As meninas gritavam, imploravam, tentando, em vão, impedir que a aula continuasse. A resposta do médico Amilcar Lobo foi: 'ela ainda aguenta'. E, de fato, a aula continuou."

Lucia Murat ficou presa por três anos e meio, enquanto Dulce Pandolfi esteve por um ano e quatro meses na prisão durante o regime militar. Elas citaram alguns nomes de torturadores daquele período.

Ao fim da sessão, o presidente da Comissão Estadual da Verdade, o advogado Wadih Damous, ressaltou que os torturadores precisam ser identificados e julgados por seus crimes.


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