Em artigo publicado na Folha em 21 de setembro de 1997, Fortunato Badan Palhares, 69, escreveu para defender a hipótese de sua perícia sobre as mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino: "A altura de Suzana é fundamental. Estando errada, estará errado todo o resto -a começar pela trajetória do tiro e por sua projeção em relação à parede trespassada pela bala".
Palhares é médico legista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e responsável pelo primeiro laudo sobre as mortes.
Leia o artigo:
Qual era mesmo a altura de Suzana?
FORTUNATO BADAN PALHARES
Três domingos atrás, a Folha trouxe um plexo de artigos de autores da casa, três ao todo, versando sobre o mesmo assunto: novas "revelações" sobre as mortes de PC Farias e Suzana Marcolino, em 23 de junho de 1996, em Maceió.
Brandindo argumentos ásperos e incisivos, no tom de verdade irrefutável, porém vicária de um parecer divulgado por peritos da USP, os jornalistas decidiram voltar suas baterias contra o documento anterior sobre o caso e, mais objetivamente, contra a minha pessoa.
Era como se, finalmente, a verdade inteira tivesse vindo à tona e a opinião pública -sempre induzida a crer na queima de arquivo- devesse ser desagravada. Embora o novo parecer reproduza em muitos pontos o anterior, feito por 11 peritos de diferentes instituições, entre os quais me incluo, há de fato uma discordância básica: a altura de Suzana. Os peritos da USP dão-lhe dez centímetros a menos: 1,57m, em vez de 1,67m. Assunto grave, incontornável e, sobretudo, intrigante. Como poderiam 11 peritos cometer erro tão primário?
A partir daí, todas as ilações se tornaram possíveis aos articulistas, dos quais o sr. Clóvis Rossi, justiça se lhe faça, é o único a manter-se nos limites da boa urbanidade. Mas escreve o sr.
Janio de Freitas: "Não se acreditando que um perito da Unicamp nem saiba usar fita métrica, é razoável supor que deformações, omissões e falsificações do seu relatório, como os dez centímetros acrescentados à altura da moça, devem-se a contingências imperativas".
Não contente com esse veredito implacável, o jornalista refere-se, sem maior cuidado, aos "procedimentos que falsearam um crime passional para dar o caso por encerrado". O mesmo argumento encontra ressonância fácil e credulidade farta na sra. Eliane Cantanhêde quando ela afirma, sem nenhuma vacilação (nem verificação factual), que "Suzana era dez centímetros menor do que consideraram os outros legistas, os gênios, e estava tentando se levantar da cama quando foi atingida".
De fato, num aspecto têm razão os articulistas: a altura de Suzana é fundamental. Estando errada, estará errado todo o resto -a começar pela trajetória do tiro e por sua projeção em relação à parede trespassada pela bala.
Tudo se alteraria, desde a curva feita pela arma em seu movimento de recuo (e, nele, a distância e a forma em que a arma foi encontrada) até o tamanho e a forma das gotas de sangue encontradas na cama. Por fim, situando o buraco da parede numa altura inamovível de 69,5 centímetros do piso, a posição de Suzana no momento do tiro depende indubitavelmente de qual fosse a sua altura.
A partir do pressuposto errôneo de que Suzana media dez centímetros a menos, altura obtida pela medição da tíbia e do fêmur (o que, em medicina legal, chama-se medição indireta) e calculada por uma tabela internacional fixa, chegou-se à conclusão apressada (embora tardia) de duplo homicídio.
Infelizmente, os articulistas não foram informados de que essa tabela é genérica demais para levar em conta discrepâncias de compleição física entre povos e raças (a margem de erro pode chegar a 5%, embora nesse caso estranhamente atinja 9,4%), especialmente quanto ao compósito altamente heterogêneo da população brasileira.
Nem levaram em consideração que, ao contrário do ocorrido com a equipe da USP, a primeira equipe mediu o próprio cadáver e usou na simulação de tiro uma pessoa de altura equivalente à de Suzana -que media mesmo 1,67m.
Não teria sido mais honesto, embora mais trabalhoso, a jornalistas com a responsabilidade de informar e interpretar corretamente os fatos conferir um detalhe tão simples antes de emitir opiniões tão peremptórias? Afinal, bastava-lhes sacar do arquivo da Polícia Civil a ficha dactiloscópica (todos temos uma) que serviu para a emissão do documento de identidade de Suzana.
Lá está sua altura verdadeira. Suzana era quatro centímetros mais alta que PC, o que se constata facilmente pelas fotografias em que aparecem juntos. Se ela medisse 1,57m, PC teria a altura algo inesquecível de 1,53m -perguntem aos jornalistas que o conheceram-, quando, na verdade, ele media 1,63m.
Assim, indagar quanto mede Suzana pode corresponder a outras indagações igualmente pertinentes: quanto medem a verdade, a competência de certos peritos, a ética da informação?
São questões incômodas, mas não tão impiedosas quanto a afirmação de que, não sabendo um perito da Unicamp "nem usar a fita métrica", tudo o que ele fez antes é "deformação e falsificação". Isso equivaleria a dizer que, tendo Janio de Freitas errado o foco de seus comentários a partir de um dado básico equivocado, suas análises políticas anteriores resultam automaticamente erradas. O que, creio, seria conclusão igualmente injusta e absurda.
Assunto para os observatórios de imprensa, para os ombudsmen e, quem sabe, para a opinião pública, tantas vezes adulada e ludibriada.
Fortunato A. Badan Palhares, 53, é médico legista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).