Folha de S. Paulo


Década de 80 foi testemunho do declínio de São Paulo, relembra leitor

Nasci em São Paulo no dia 26 de agosto de 1978 pela manhã. No dia seguinte, meu pai esteve no vão do MASP fotografando uma apresentação de Congada em um dos endereços mais famosos da cidade. Descobri isso já adulto, olhando fotos antigas que têm aquela data no rodapé e falei para ele: "pô, no dia seguinte ao meu nascimento você já estava trabalhando?!" Ele nem me deu bola... Morávamos na rua Piracuama, no bairro do Sumaré, numa casa que hoje é um pet shop.

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Logo mudamos para uma casa na Vila Madalena e, quando eu tinha apenas quatro anos, para o apartamento em que viveria por cerca de 25 anos, na alameda Franca, no Jardim Paulista. O prédio, com apenas três andares, já impressionava em 1982. Seu hall de entrada cheio de espelhos, o elevador com porta pantográfica, os janelões que acompanham a escada em curva, tudo pensado para o bem-estar dos moradores. O apartamento era igualmente amplo, com pé-direito de três metros e uma janela que ocupava toda a largura da sala. Quando estava calor, lá dentro era fresco e vice-versa.

Mais impressionante era a vida que levava no bairro na década de 80. Meu primo também morava no prédio e juntos crescemos em meio a sobrados geminados e muitas vilas. Andávamos muito pelas ruas, íamos às lojinhas do bairro, comprávamos revistinhas na banca, arriscávamo-nos um tanto... Quando chovia, apostávamos corrida de palito de sorvete na corredeira que se formava junto à guia da rua Peixoto Gomide. Certa vez, graças a um desafio, demos a volta no quarteirão de pijamas. Nosso limite era a avenida 9 de Julho, que não atravessávamos sem a companhia de um adulto por nada desse mundo, e a rua Augusta. Não raro, meu pai aparecia de carro para nos resgatar na Oscar Freire ou na Lorena.

Jorge Araújo - 21.jan.2000/Folhapress
Vista aérea da avenida Paulista, na região central de São Paulo
Vista aérea da avenida Paulista, na região central de São Paulo

Outra diversão impagável era invadir construções. Sim, quando não tinha nenhum pedreiro por perto, nos deixávamos levar pela emoção e garimpávamos tesouros em meio aos escombros que revelavam a terra vermelha que um dia, num mundo muito distante, ocupara a região. Íamos atrás de qualquer coisa que contrastasse com o concreto. Não encontrávamos muita coisa, mas a exploração sempre valia a pena.

À época, mal sabíamos que estávamos testemunhando o declínio de uma cidade; que aqueles destroços tinham um valor simbólico infinitamente maior que qualquer coisa encontrada no meio da destruição. Era o começo da especulação imobiliária desmedida que transformaria a cidade para sempre; que transformaria o azul do céu em um mero detalhe.

Hoje, ao passar pela Alameda Franca, é impossível não ficar incomodado ao atravessar o corredor de prédios com mais de dez, vinte andares que dominam a paisagem. As árvores tão características do bairro --mas sufocadas pelo concreto-- também parecem não suportar mais e costumam cair em dia de tempestades de verão, transformando o rótulo de "alameda" em saudade. Mas o velho predinho está lá, com mais de 70 anos de idade e centenas de propostas ao longo das últimas décadas para virar pó.

Quem visita o nobre endereço, talvez iludido com os arranha-céus e lojas de grife que vendem roupas ao preço de uma viagem para a Europa, pode se impressionar, mas quem cresceu ali não passa incólume à tristeza. Sim, estamos falando daquele que é considerado um dos melhores bairros de São Paulo, mas nem isso é justificativa para o descaso com que o "jardins" absorveu a demanda do mercado imobiliário (e dos pet shops). Prédios lindos foram demolidos e no lugar foram erguidas construções sem personalidade, verdadeiras aberrações arquitetônicas. Além disso, são "obras" cujo conceito se ampara em dois pilares primordiais: maior individualidade e maior número de vagas na garagem. Como sujeitos individualistas não andam a pé, o trânsito na região só piora. Ah, quem me dera voltar no tempo e, junto com meu primo, correr por aquelas ruas. Meus filhos é que eu não vou deixar...

Hoje, moro bem perto dali, na Bela Vista e, quando caminho pela Avenida Paulista com a minha mulher na hora do rush, noto as pessoas apressadas, ziguezagueando entre tantas outras, e observo o MASP, o gigante erguido em 1968, dez anos antes do meu nascimento, pensando na temporalidade das coisas, na ingenuidade de meu pai em 78, mas, principalmente, atento ao fato de que estamos em uma cidade que nega sua história, pois para a grande maioria das pessoas que aqui vivem, a grana é mais importante que a memória afetiva. "Aposto que nenhuma dessas pessoas já entrou nesse museu", digo para ela que apenas sorri.

Thiago Iacocca é jornalista e escritor. Publicou o romance Furta-cor (Ed. Conex, 2006) e o infantil Meu avô italiano (Panda Books, 2010).


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