Folha de S. Paulo


CLAUDIO LAMACHIA

Acabar com privilégios e proteger a República

Ranier Bragon/Folhapress
Apesar de a Polícia Militar ter fechado o acesso, não há previsão de manifestações na Esplanada dos Ministérios. Em frente ao Congresso, só há policiais na manhã desta quarta-feira
Vista da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a partir do Congresso Nacional

A entrada em pauta, no Supremo Tribunal Federal (STF), do caso que discute a validade do foro por prerrogativa de função nos faz lembrar que está parada no Congresso a proposta de emenda à Constituição que pretende, justamente, acabar com esse instituto popularmente conhecido como foro privilegiado.

Trata-se de uma demanda urgente e necessária. Afinal de contas, já se passaram 128 anos da proclamação da República e 32 anos do fim da ditadura militar. Não faz mais sentido mantermos no arcabouço legal alguns privilégios típicos de impérios e ditaduras.

É desejável e salutar que o Congresso retome a discussão porque, no processo legislativo, diferentemente do que ocorre no tribunal, é possível ampliar o foco e incluir no debate, por exemplo, o fato de o foro não ser o único instituto usado de forma distorcida em nosso arcabouço jurídico.

A questão não deveria ser, pura e simplesmente, colocar abaixo o instrumento do foro por prerrogativa de função, que foi criado originalmente para proteger os cargos e as instituições –não os seus ocupantes. O alvo da investida deve ser todo o sistema de privilégios.

Mudar o texto constitucional é um movimento muito sério, que deve servir ao aperfeiçoamento do sistema normativo.

Por isso, precisa ser precedido de um debate igualmente sério e aprofundado —o que, infelizmente, é raramente feito no Brasil. Tanto é assim que, desde 1988, quando foi promulgada nossa atual Constituição, já foram feitas 96 emendas. Nos Estados Unidos, cuja Constituição data de 1787, foram feitas só 27 emendas —a última, de 1992, proibiu deputados e senadores de aumentarem o próprio salário.

Mergulhado em profunda crise política e institucional, o país tem grande demanda por valores éticos mais rígidos, sobretudo com relação ao trato da coisa pública e à aplicação dos princípios da equidade perante a lei. Nesse sentido, o foro privilegiado não é a única afronta à igualdade de todos perante a lei.

É preciso inserir nesse debate a concessão indiscriminada de carros oficiais, de escoltas armadas, de viagens de avião, de auxílio-moradia, de jantares, de festas pagas com dinheiro público e diversos outros exemplos.

Nessa lista de regalias estão ainda os supersalários dados a alguns altos servidores públicos do Legislativo, Executivo, Judiciário e do Ministério Público, que não veem problema em receber mais do que o teto definido na lei que deveria valer para todos.

O teto se tornou ficção, um verdadeiro faz de conta. Não há justificativa para alguns agentes públicos receberem verdadeiras fortunas enquanto os outros —a maioria— têm seus parcos salários atrasados e parcelados.

O grande pleito da sociedade, depois dos protestos de 2013 e dos movimentos pelo impeachment de Dilma Rousseff e de Michel Temer, é o fim do tratamento diferenciado para os grupos que conseguiram se apropriar da lei para se blindar das suscetibilidades a que estão sujeitos todos os cidadãos.

A intenção da Constituinte jamais foi criar um "foro privilegiado" nem castas de agraciados com benefícios contrários à isonomia entre as cidadãs e cidadãos.

Para retomar os rumos definidos na Constituição, é preciso banir as regalias e definir quais são as pouquíssimas funções que realmente requerem atenção do Judiciário contra as oscilações de adversários políticos e do mercado. Isso é proteger as instituições, não seus ocupantes.

A existência de milhares de detentores de foro e de outros privilégios, como ocorre hoje, é uma distorção cruel da lei.

CLAUDIO LAMACHIA, especialista em direito empresarial, é presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

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