Folha de S. Paulo


editorial

Despautério

Rahel Patrasso/Xinhua
(171113) -- SAO PAULO, noviembre 13, 2017 (Xinhua) -- Manifestantes participan en una protesta en defensa de los derechos de las mujeres y en contra de la ley
Mulheres protestam em São Paulo contra projeto de lei que pode proibir o aborto em caso de estupro

Uma preocupação permanente da bancada religiosa do Congresso Nacional, compreensivelmente, é a legislação referente ao aborto.

Em sua mais alentada iniciativa contra a prática, apresentou-se em 2007 projeto de lei que institui o Estatuto do Nascituro.

Até hoje em etapa inicial de análise na Câmara dos Deputados, o texto reúne dispositivos questionáveis como a proteção integral a embriões, inclusive aqueles congelados em clínicas de fertilidade.

Propostas do gênero —assim como as destinadas a ampliar as possibilidades de interrupção legal da gravidez— despertam previsível e intensa polêmica. No caso mais recente, parlamentares ligados a igrejas evangélicas fizeram avançar uma tentativa de restrição mais radical, com mudança das normas expressas na Constituição.

Em comissão especial da Câmara, aprovou-se, por 18 votos a 1, um dispositivo decretando que a vida começa na concepção.

Ou, dito de outra maneira, que as três situações em que o aborto é hoje autorizado no país —gravidez de feto anencefálico, resultante de estupro ou que represente perigo de vida para a mãe— ficam equiparadas ao homicídio.

Por legítimas que sejam as bandeiras pró-vida, a propositura representa um despautério evidente, de aplicação inconcebível e em flagrante desacordo com as preferências majoritárias da sociedade.

Se é verdade que a maior parte da população não apoia a ampliação do direito ao aborto, tampouco se pretende restringi-lo. Pesquisas do Datafolha apontam que cerca de dois terços dos brasileiros defendem a permanência da legislação tal como se encontra hoje.

Dadas as consequências sociais das gravidezes indesejadas e dos riscos representados por procedimentos clandestinos, entre outros motivos, esta Folha concorda que seja descriminalizada a interrupção nos estágios iniciais. Em se tratando de questão tão divisiva, um plebiscito seria aconselhável.

Felizmente, mostra-se remoto o risco de que prospere a proposta de emenda constitucional que levaria ao encarceramento de centenas de milhares de brasileiras.

Para tanto, seriam necessários os votos de 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores. A despeito do placar elástico obtido na comissão —dominada por parlamentares ligados a causas religiosas—, o texto não reúne condições de romper tais barreiras numéricas.

Provavelmente nem seus autores desejem de fato a implantação de norma tão draconiana. O momento, afinal, é propício para agradar aos respectivos nichos eleitorais.

editoriais@grupofolha.com.br


Endereço da página:

Links no texto: