Folha de S. Paulo


CHICO ALENCAR

A reinvenção da esquerda

Reprodução
Cena do filme
Cena do filme "Outubro", sobre a Revolução Russa

O passado sempre pede releituras, à luz de novos conhecimentos. E o futuro nunca será realização certeira do "inevitável". Completado um século da Revolução Russa, impõe-se às forças progressistas um balanço de tudo o que foi sonhado e realizado.

Celebrar o rico legado de 1917 é também não perder a capacidade de "cerebrar": refletir, avaliar. Avançamos quando reconhecemos negatividades no "socialismo real" do século 20: autoritarismo, novas castas (a nomenklatura da estadolatria), culto à personalidade, dogmatismo do partido único, militarismo.

Desde o fim da União Soviética, a esquerda tem sofrido reveses. Sim, há o êxito —sempre parcial e em meio a contradições— das experiências recentes em países da América Latina, na Grécia, em Portugal.

Houve ascenso do progressismo na Espanha e na Inglaterra, além da pré-candidatura de Bernie Sanders nos EUA. Tudo revela que o ideário da igualdade social e da emancipação das opressões do capitalismo segue vivo.

Ele se efetiva no que o saudoso Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) chamava de "reformismo revolucionário".

Persistem, no planeta da hegemonia do capital financeirizado, as tragédias da fome, da devastação ambiental, do desemprego, das guerras econômicas e "religiosas", das migrações em massa, da banalização da morte.

Cristaliza-se a cultura do homo consumericus em meio às multidões de excluídos, afundados na "ninguendade". Há muito o que transformar!

A ressignificação do socialismo, já em curso, assume compromisso radical com a democracia, com a socialização dos meios de governar.

O socialismo, em ensaios e erros, vai sendo reinventado. Não será o do estatismo burocrático nem do totalitarismo de mercado: exige-se uma nova cidadania que atue soberanamente no espaço público —território de afirmação de singularidades, do controle popular das instituições, da tessitura do interesse das maiorias. Da construção, tijolo por tijolo, do desenho lógico da igualdade.

O desenvolvimento das forças produtivas só alterará as relações de produção se incorporar transparência na gestão, compromisso com o cuidado ecológico e ampliação das oportunidades culturais. Ódios e preconceitos são reação à afirmação da diversidade de gênero, das escolhas existenciais, da busca da felicidade. Toda revolução autêntica implica mudança profunda na subjetividade coletiva.

Os meios são os fins em processo de realização. As novas pautas da esquerda, no Brasil e no mundo, vêm sendo escritas a quente, nas lutas cotidianas.

No caso do Brasil, frente aos retrocessos perpetrados pela coalização governista fisiológica a soldo do privatismo máximo, o devir se presentifica no clamor organizado pelos direitos básicos ao teto, à terra, à segurança. E também ao trabalho, à dignidade, à liberdade de crença e de não crença, à beleza da arte que provoca e faz pensar. A "presentação" fustiga a representação formal, desacreditada.

A utopia de uma sociedade igualitária na pluralidade sacode a acomodação diante das formas atuais de exercício do poder.

A esquerda contemporânea precisa combinar a ação concreta, nas relações de vizinhança e de trabalho, com a disputa de espaços institucionais, centros decisórios de políticas públicas gerais.

A poesia futurista de Maiakovski (1893-1930) profetiza a reconstrução histórica: "ressuscita-me, para que não mais existam amores servis/ para que ninguém tenha que se sacrificar por uma casa, um buraco/ para que a partir de hoje a família se transforme/e o pai seja pelo menos o universo/ e a mãe, no mínimo, a terra".

CHICO ALENCAR é professor de história e deputado federal (PSOL/RJ)

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