Folha de S. Paulo


JERSON KELMAN

O fator X e o Tietê

Lucas Lima/UOL
Vista do rio Tietê a partir da ponte da Casa Verde, em São Paulo
Vista do rio Tietê a partir da ponte da Casa Verde, na zona norte de São Paulo

A prestação de serviços em ambiente competitivo dispensa intervenção de agência reguladora. Por exemplo, não teria sentido a existência de uma entidade oficial para definir preços praticados pelas lavanderias porque, nesse caso, o consumidor consegue proteger seus interesses simplesmente escolhendo a melhor combinação de atendimento, preço e qualidade.

Não é o caso da distribuição de água potável, um modelo clássico de monopólio natural. Do ponto de vista econômico, seria irracional permitir que numa mesma rua competissem diversas empresas, cada uma instalando e operando a sua rede de tubulações.

A confusão seria grande e a tarifa, alta, por conta da perda de economia de escala. Raciocínio similar se aplica aos serviços de distribuição de gás e de energia elétrica, bem como à coleta de esgoto.

Todos "naturalmente" mais bem prestados na forma de monopólio.

As agências reguladoras existem para impedir que tanto o consumidor sofra abusos do monopolista quanto que o concessionário se veja incapacitado de prestar serviços na extensão e qualidade pactuadas nos contratos com os governos, por efeito de tarifas insuficientes.

Na prática, isso significa que o preço unitário do serviço, chamado de tarifa, não depende da lei da oferta e da procura, e sim da decisão da agência reguladora.

Em geral, as agências calculam a tarifa considerando que a concessionária deve receber dos consumidores o suficiente para cobrir os custos operativos mais a amortização e a remuneração dos investimentos feitos com os recursos dos acionistas da concessionária.

As agências costumam incentivar a melhoria da produtividade, permitindo que os correspondentes benefícios sejam alocados por algum tempo em benefício dos acionistas. Porém, passados alguns anos, esse benefício é repassado para os consumidores por meio do redutor tarifário conhecido como "Fator X", concebido pelo economista inglês Stephen Littlechild nos anos 80 do século passado.

Quando já existe a infraestrutura para prestação do serviço completo a toda a população, como era o caso do setor elétrico inglês regulado por Littlechild, ou do setor elétrico brasileiro de hoje, faz sentido buscar a contínua redução tarifária.

Porém, essa visão regulatória enxerga apenas dois grupos com interesses contraditórios: de um lado os consumidores, interessados em serviços de qualidade com o menor custo possível; de outro, os acionistas das concessionárias, interessados no lucro.

Quando o serviço não está universalizado, como é o caso do saneamento no Brasil, há um terceiro grupo, insuficientemente considerado pelas agências: os que ainda não têm acesso aos serviços.

Esses "sem-serviço" são as famílias que não recebem regularmente água potável em suas residências ou que são obrigadas a conviver com valas negras em seus bairros, devido à inexistência de redes coletoras de esgoto.

São também os que se ressentem do estado de poluição dos rios e praias de nossas principais cidades, devido, pelo menos parcialmente, ao lançamento de esgoto sem prévio tratamento. Ou seja, todos nós.

Se os reguladores de saneamento eliminassem o Fator X, haveria mais recursos para investir na infraestrutura necessária para solucionar mais rapidamente esses problemas, favorecendo toda a sociedade.

No caso de São Paulo, está ao alcance da Arsesp (agência que regula a Sabesp) tomar essa decisão, carimbando os frutos dessa "renúncia regulatória" para investimentos. Por exemplo, os indispensáveis para a despoluição do Tietê.

JERSON KELMAN, ex-diretor da ANA (Agência Nacional de Águas) e da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), preside a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo)

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