Folha de S. Paulo


ANGELA VIDAL GANDRA MARTINS

Fundamentos do Estado democrático

Tive a oportunidade de estudar a obra completa de Lon Fuller, catedrático de filosofia do direito da Universidade Harvard (EUA). Sua proposta está fundamentada na capacidade humana de aderir a regras racionais e razoáveis a partir de sua liberdade e responsabilidade, visando a amizade e a comunicação como base da vida social, política e econômica.

Nessa hipótese, o direito ofereceria uma pauta mínima, mas profundamente segura, para que a sociedade possa se organizar com criatividade, respeito e paz.

Na construção dessa ordem, os agentes, em ambos os polos, são convocados a entender e viver as regras, que devem, por sua vez, apresentar oito requisitos essenciais.

São eles: generalidade (regras aplicáveis a todos); publicidade (torná-las de conhecimento de todos os cidadãos); prospectividade (não devem ser retroativas); clareza (estabelecer regras simples); coerência (não devem solicitar ações contraditórias); possibilidade (não devem exigir condutas que ferem a capacidade do cidadão); estabilidade (devem permanecer constantes); e congruência (harmonia entre as regras declaradas e administradas).

Percebe-se o sólido fundamento antropológico de sua teoria. De fato, como afirma Francis Fukuyama em seu livro "O Fim da História e o Último Homem", todo sistema jurídico possui uma antropologia subjacente e da maneira com que concebe o ser humano será regulado e promovido ou manipulado e subjugado.

Isso é absolutamente rejeitado pelo autor ao afirmar que "um agente jurídico não é um membro de uma população submissa, pronto para fazer o que lhe indicam".

Ponderando sobre o escandaloso declínio da democracia na Venezuela e a luta que muitos travam em nosso país para fazer valer a separação dos Poderes e o respeito ao ser humano através do direito, trago como tema de reflexão esses pressupostos.

Servem de teste para evidenciar um sistema jurídico saudável e assim confirmar o quanto vamos nos distanciando de um verdadeiro Estado democrático, por meio de atos tais como a seletividade na aplicação das regras, a ignorância cultivada por meio das ideologias, as tentativas de aplicar o direito de forma retroativa, desproporcionalidade e arbitrariedade na penalização ou despenalização, a inconsistência jurídica sistêmica e, principalmente, a falta de correspondência às expectativas jurídicas e comportamentais por falta de coerência ética ou sucumbência a interesses políticos pessoais ou de grupo.

Os pressupostos expressam um profundo respeito à racionalidade humana e à sua liberdade constitutiva. Em tese, o ser humano concebido por nossa Constituição também aponta nessa direção.

O caminho seria, como aconselha Fuller, interpretá-la e aplicá-la segundo seus reais propósitos, à luz dos oito princípios procedimentais. Como comenta: "Se fazemos as coisas da forma correta, é mais fácil que façamos a coisa certa". A questão é saber se isso é o que efetivamente desejam os detentores do poder.

PARTICIPAÇÃO

ANGELA VIDAL GANDRA MARTINS, doutora em filosofia do direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é sócia da Advocacia Gandra Martins

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamentos contemporâneo.


Endereço da página:

Links no texto: