Folha de S. Paulo


Juliana de Albuquerque

Anaïs Nin e o feminismo

Ao participarmos de uma discussão sobre as lutas pela libertação e o empoderamento feminino, costumamos imaginar que o nosso único campo de batalha seja a esfera pública e que apenas através da militância e do engajamento político sejamos capazes de transpor as barreiras culturais que atrapalham o exercício da liberdade da mulher.

É comum pensarmos a mulher unicamente enquanto membro de uma coletividade oprimida por forças culturais exteriores ao indivíduo, como se o papel atribuído a cada mulher na construção da nossa cultura e dos nossos hábitos pudesse ser interpretado única e exclusivamente como aquele de espectadora e vítima, sem levarmos em conta a ambiguidade que permeia as relações humanas.

Assim, corremos o risco de emprestarmos soluções políticas para muitos questionamentos que, em realidade, precisariam ser examinados individualmente, levando em consideração a luta solitária de cada mulher em busca do equilíbrio entre a satisfação dos seus desejos e a afirmação da sua própria personalidade.

Essa busca da mulher por equilíbrio e autonomia emocional é um dos principais temas abordados pela obra da escritora francesa Anaïs Nin (1903-1977), principalmente através dos seus diários íntimos (1931-1974), cujos sete volumes foram publicados pela primeira vez entre as décadas de 1960 e 1970.

Segundo Nin, o principal objetivo dos seus diários teria sido mostrar que a nossa autonomia emocional surge enquanto resultado de um processo criativo liderado pela própria mulher.

Ciente de que a ênfase na luta política não deve diminuir a importância do exercício individual do autoconhecimento, a escritora enfatiza que, embora precisemos de ajuda para vencer obstáculos sociais e econômicos, ainda existirão obstáculos que nos tange vencer sozinhas, como, por exemplo, a falta de confiança ou amor próprios e o sentimento de culpa.

Em uma das palestras que proferiu nos últimos anos de sua vida, Nin explicou que sua intenção ao publicar os diários foi falar a respeito da libertação da mulher em termos psicológicos para que o próprio movimento feminista percebesse que existe mais de uma via rumo à experiência da liberdade.

Nessa palestra, Nin comenta acerca da libertação feminina em um sentido interior:

"Eu não estou falando sobre a liberdade que você pode adquirir ao desafiar as leis de aborto. (...) Eu estou falando sobre a necessidade de mudança interior; a necessidade de nos livrarmos do sentimento de culpa (...), a necessidade de considerarmos que, algumas vezes, o obstáculo a ser superado não é o homem, mas uma barreira que carregamos dentro de nós mesmas desde a infância. Algumas vezes esse obstáculo é criado pela família, outras pela nossa própria falta de confiança em nós mesmas".

Segundo Anaïs Nin, a vantagem dessa abordagem de viés psicológico é comprovar que o discurso feminista jamais poderá ser único e que, portanto, precisaria abarcar outros modelos capazes de humanizar as suas próprias demandas políticas, ao invés de simplesmente politizar a vida íntima do indivíduo.

Parece-me, portanto, que a grande contribuição de Anaïs Nin para o debate feminista teria sido articular uma resposta à pergunta que até mesmo Freud não soube responder: afinal, o que quer uma mulher?
Não apenas vitórias políticas, mas, também, a conquista do autodomínio necessário para se viver a vida de maneira plena.

PARTICIPAÇÃO

JULIANA DE ALBUQUERQUE é mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv (Israel) e doutoranda em filosofia e literatura alemã pela University College Cork (Irlanda)

PARTICIPAÇÃO

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