Folha de S. Paulo


ELOISA ARRUDA

Tráfico de pessoas, combate atual

O golpe não poderia ter sido mais covarde, a começar pelo instrumento do crime: a fé das pessoas.

Ao longo das últimas semanas jornais do mundo inteiro informaram que brasileiros que denunciaram ter sido submetidos a trabalho escravo nos Estados Unidos.

Os criminosos eram pastores de uma igreja, que prometiam muitas oportunidades –e, em solo americano, confiscavam os passaportes das vítimas e as forçavam a trabalhar, sem remuneração.

Esse modelo não é novo: traficantes de pessoas quase sempre fazem promessas, aproveitando-se da vulnerabilidade e confiança das vítimas.

O mais recente Relatório Global de Tráfico de Pessoas, elaborado em 2016 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, identificou que criminosos e vítimas geralmente vêm do mesmo lugar ou região, falam a mesma língua ou possuem origem étnica comum –fatores que ajudam os traficantes a conquistar a confiança de suas presas.

Outro fator tem transformado esses casos em algo ainda mais doloroso: na fuga de países em guerra ou de perseguições por regimes autoritários, os refugiados acabam sendo presas fáceis dos traficantes.

No Brasil, o tema foi apresentado pela primeira vez de forma detalhada em "Salve Jorge" (2012-2013), novela de Gloria Perez (TV Globo) que explicitava o funcionamento do tráfico humano –das propostas milagrosas para melhorar de vida à realidade cruel de se transformar em refém de exploração econômica e sexual.

Em São Paulo, frequentemente assistimos a operações de investigação que libertam imigrantes em situação de trabalho análoga à escravidão, geralmente na indústria têxtil.

E não importa se as vítimas são brasileiros levados ao exterior ou estrangeiros trazidos para cá: uma vez fora do país de origem, todos se transformam em reféns dos traficantes, com documentos confiscados, uma enorme "dívida a pagar", pouco ou nenhum conhecimento do idioma local e a permanência no país de forma absolutamente irregular.

Paradoxalmente, uma das mais graves violações aos direitos humanos é a terceira atividade ilegal mais lucrativa do mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e armas.

Na sociedade brasileira, inclusive, é algo enraizado –os primeiros episódios remontam às primeiras décadas após o Descobrimento do país, com o tráfico de negros africanos. Mais de três séculos depois, a escravidão deixou oficialmente de existir, mas não o tráfico humano.

Assim, enfrentar este problema depende não apenas da atuação do governo, mas de todos os setores da sociedade. Na última semana de julho, realizou-se em todo o mundo a campanha Coração Azul, iniciativa da Organização das Nações Unidas que estabeleceu o Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico Humano (30 de julho).

Em São Paulo, monumentos foram iluminados na cor azul para nos lembrar do sofrimento daqueles que são vendidos por outras pessoas.

É necessário que todos nós possamos nos colocar no lugar do outro, entendendo melhor as vítimas e a necessidade da luta constante.

O combate ao tráfico humano é um dever de todos nós, a fim de tornar o país –e o mundo– um lugar melhor.

ELOISA ARRUDA, é secretária de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e procuradora de Justiça aposentada do Ministério Público de São Paulo


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