Folha de S. Paulo


ANNA VERONICA MAUTNER

Amizade é tudo

No tempo em que as famílias eram grandes, bastava a presença dos primos, dos dois lados, para se ter uma festa.

A família ampla fazia a vida ser muito diferente, mas quando cada casal tem um par de filhos e estes apenas três ou quatro primos, acabamos convidando outras pessoas, de fora da família, para fazer uma celebração. Do contrário, teremos apenas um pequeno encontro entre amigos e conhecidos, ficando um vácuo afetivo nessas relações.

Já vai longe o tempo em que primos entre si enchiam o salão e até a igreja em dia de batizado ou casamento. Amigos eram então um anexo; hoje os primos é que são os anexos. Essa situação moderna, de ausência de numerosos primos, ampliou o espaço da amizade.

Amizade é afeto, atenção, carinho, lealdade, mútua proteção. Tudo o que antigamente era função obrigatória dos membros da família.

A facilidade dos transportes modernos abriu espaço para que familiares se afastassem e as amizades substituíssem esses laços, rompidos pela distância.

Imagine só quando um pequeno núcleo familiar mudava de país ou continente -no local da nova residência criavam-se outros laços.

Surgiram assim novas conexões afetivas, sendo a amizade a mais importante delas.

Família e amizade se intercalam hoje. Muitas organizações sociais surgiram neste vácuo: congregações e clubes são tentativas de reunir oriundos de mesmo passado.

Clube de Inglês, Clube de Francês, Clube de Alemão, entre outros, eram instituições comuns no começo do século 20.

Há cerca de 50 anos, quando um jovem artista cismava de morar em Paraty (Rio de Janeiro) ou Ouro Preto (Minas Gerais), por exemplo, ele tinha que ir à telefônica marcar dia e hora para se comunicar com a família. Grandes amizades eram fixadas entre desterrados.

Quando, na década de 1950, foram abertas faculdades pelo interior do país, houve grande movimento de intelectuais que se encontravam nesses novos núcleos e constituíram-se em grandes amigos.

A amizade apoiou-se nos novos meios de transporte e comunicação. Permitiu o desterro voluntário, repetindo o que ocorreu a partir de 1600, quando se colonizou a América e a Oceania, com gente que veio de toda parte e se encontrou ao acaso.

A intensidade do deslocamento e a facilidade de comunicação adubaram os afetos locais.

Não é que antes não existisse amizade, mas ela era eventual. Com o desterro voluntário, disseminou-se.

Hoje, amizade é tudo.

Amizade é modernidade!

ANNA VERONICA MAUTNER é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

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