Folha de S. Paulo


Maria Rita Loureiro

Brasil deveria liberar candidatos sem partido nas eleições? NÃO

EM DEFESA DA DEMOCRACIA DE PARTIDOS

As eleições são fundamentais, mas não bastam para construir uma democracia. É necessário ter partidos.

Se eles estão sujeitos à corrupção, ao poder econômico, à oligarquização interna e a outras práticas nocivas conhecidas no Brasil e fora daqui, há que se lutar para combatê-las, mas não destruir os partidos.
Candidatura independente não é a solução para os males atuais, por duas razões.

Primeiro, os candidatos avulsos não estão imunes aos problemas das agremiações, sendo até mesmo mais vulneráveis.

Segundo, essa regra produz efeitos perversos à democracia. Leva à personalização da política, com a suposição de que o "bom governo" depende de atributos de homens superiores, capazes de iluminar e conduzir a nação. Nada mais ilusório.

Não se trata de desqualificar as justas expectativas de bons governantes, mas sim de enfatizar que respeito às leis, responsabilidade pelas decisões e habilidade de se cercar de técnicos competentes são requisitos básicos de um político em uma democracia.

Mas não suficientes. O que está em jogo é um projeto de país.

Embora "partido" indique parte de um todo, ele se constitui pela agregação de ideologias ou interesses comuns. É força coletiva a disputar o poder para realizar projetos de governo, que recaem sobre todos.

Além de representar diferentes grupos, o partido tem também a função de dar direção política para a nação quando se torna governo. Nesse sentido, pode-se afirmar só haver democracia efetiva se houver partidos.
Assim, a personalização da política, reforçando o enfraquecimento das siglas e desfavorecendo o desenvolvimento de suas potencialidades democráticas, gera efeito perigoso.

Aliás, não é coincidência que a bandeira do governo de indivíduos virtuosos, sempre associada ao desprezo pelos partidos, desemboca em autoritarismo, como visto em vários momentos da história brasileira, e até em despotismo, como revelam os exemplos da Itália fascista e da Alemanha nazista.

Nunca é demais relembrar que o tenentista no Brasil dos anos 1920, a despeito da crítica às mazelas da República oligárquica, teve como base uma forte ideologia antipartidária, o que ajudou a construir o clima político do golpe do Estado Novo.

A ditadura militar buscou se legitimar por lógica não partidária, apelando à competência de notáveis em matéria econômica.

Apesar das lições que a história oferece, presenciamos a volta da aversão à política, amplificada pelos escândalos. Esse cenário torna ainda mais difícil a defesa das siglas, pois precisam enfrentar a crise de representação nas sociedades contemporâneas.

Se o desafio de fortalecer os partidos, e com eles a democracia, é enorme, isso não pode nos fazer perder de vista a ideia de que a realidade dos fatos não destrói um princípio.

Não se pode, por causa de dilemas reais, desqualificar as siglas, destruindo sua potencialidade para organizar a luta democrática.

Assim, o cerne da questão não é substituir partidos por pessoas -ou mesmo instituições representativas por supostas práticas de democracia direta.

Trata-se, sim, de refundar as legendas para que tenham futuro e contribuam com a imperiosa necessidade de aprofundar a democracia.

No Brasil de hoje, isso significa realizar reformas dos sistemas eleitoral e partidário e das regras de financiamento. Significa igualmente cumprir a difícil tarefa de democratizar os partidos, intensificando a participação de seus membros e o debate com o eleitorado.

Isso para arrostar, de um lado, a nova realidade trazida pela chamada democracia de audiência, nucleada por líderes que têm mais performances midiáticas do que projetos para o país, e, de outro, os desafios provocados pela amplificação das redes sociais.

MARIA RITA LOUREIRO, doutora em sociologia pela USP, é professora de ciência política da Fundação Getulio Vargas de São Paulo

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