Folha de S. Paulo


Internação compulsória é método adequado para enfrentar o problema da cracolândia? NÃO

SOLUÇÃO ILEGAL, INEFICAZ E INÍQUA

A internação compulsória é um recurso previsto em lei para casos em que um paciente precisa ser internado contra a própria vontade, sem que haja responsáveis legais para aprovar a decisão.

Nessa situação, um juiz autoriza a medida. Como nos outros dois tipos de internação -a voluntária e a involuntária-, é necessário que um médico faça a indicação, tendo como base critérios clínicos decididos individualmente.

Quando cuidadosamente preconizada, a internação compulsória serve para zelar pela saúde de alguém que não está em condições de decidir por si e não tem quem o faça por ele. Estamos falando aqui de riscos imediatos à vida, da própria pessoa ou de outros que com ela convivem.

Ainda assim, a lei é bastante clara ao limitar essa opção para quando as chances de tratamento em liberdade tiverem se esgotado. Embora tais situações possam ocorrer no caso de usuários de drogas, elas são exceções, não a regra.

Apesar da insistência do prefeito de São Paulo, João Doria, na tese da internação forçada, três fatos básicos sobre o uso de tal método como forma de resolver o problema da cracolândia parecem ser ignorados: é ilegal, ineficaz e iníquo.

Ilegal porque qualquer internação precisa ser determinada por critérios sanitários que só podem ser aplicados de forma individualizada. O Tribunal de Justiça de São Paulo reforçou tal posição ao negar, a pedido do Ministério Público e da Defensoria Pública, a solicitação anacrônica da prefeitura de autorização para "apreender" usuários de droga nas ruas e encaminhá-los para avaliação médica.

A proposta da prefeitura também é ineficaz, pelo fato de ser contra a vontade do usuário. Uma minoria que faz uso problemático de drogas alcança bons resultados ao ser internada. Duas modalidades de cuidado para esses casos -os centros de atenção psicossocial (Caps) e as comunidades terapêuticas- frequentemente discordam sobre inúmeros pontos, mas estão de acordo com a necessidade de o tratamento ser, acima de tudo, voluntário.

Por fim, ao ser advogada de forma massificada, a solução proposta é iníqua -ou seja, reforçadora de desigualdades sociais.

Focar na internação compulsória para dirimir problemas que envolvam o crack, mas intrinsecamente associados a outras situações de vulnerabilidade, é correr sério risco de fazer uma "faxina social" cujo o efeito será antes de tudo cosmético, sem ajudar efetivamente as pessoas em perigo.

Vale ainda enfatizar que criticar a medida não significa cruzar os braços e ficar esperando por um "milagre". Ao contrário. A atenção pública ao uso problemático de substâncias é complexa e exige muito trabalho.

Parte disso já está sendo feita, porém precisamos de alternativas ainda mais corajosas que cubram um amplo espectro de necessidades: da internação para desintoxicação aos consultórios na rua, dos serviços ambulatoriais à redução de danos. Esses outros procedimentos precisam ser executados com continuidade, recursos e respeito ao usuário.

Diferente do que possa parecer, refugiar-se na internação compulsória não é um ato de coragem, mas sim de covardia política. É escolher a solução fácil, midiática e palatável, porém ineficiente.

Há muito esforço a ser feito, mas ele tem deve ser constante e sem ilusões de que ações repressivas, mesmo com a melhor das intenções médicas e morais, resolverão o grave impasse da cracolândia.

LUÍS FERNANDO TÓFOLI é psiquiatra e professor de psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

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