SEM BENEFÍCIOS, CRIMES FICARIAM IMPUNES
Na técnica da argumentação, a inversão do foco de debate é um conhecido estratagema de retórica.
Quando não se tem argumentos para enfrentar o mérito da discussão, procura-se fulanizar o diálogo para se esquivar do cerne da questão posta. Isso tem ocorrido no caso da colaboração premiada dos irmãos Batista.
Em vez da indignação com os estarrecedores crimes revelados, o debate foi tergiversado para a insurgência contra os benefícios franqueados aos colaboradores, como se a propalada generosidade da sanção premial atenuasse a indisfarçável gravidade dos fatos trazidos à tona.
Esse sofismático raciocínio tenta desviar o foco do ponto essencial, a reprovação dos crimes, para atacar os beneplácitos concedidos aos colaboradores.
Invertamos esse entendimento: sem benefícios, não haveria colaboração; sem colaboração, os atos delituosos permaneceriam desconhecidos e, portanto, impunes.
Revelar crimes em contrapartida a benefícios -eis a lógica do instituto da colaboração premiada, via de mão dupla, ainda pouco compreendida num sistema de tradição litigiosa, que, por muito tempo, manteve-se intransigente à justiça criminal negociada, à mercê da impunidade de crimes incógnitos.
Tem-se alardeado que o acordo teria concedido "imunidade" aos irmãos Batista. Em absoluto! Imunidade tem o parlamentar na tribuna do Congresso, o advogado no exercício da profissão. No caso em análise, não há propriamente "imunidade", mas sim dois benefícios específicos da legislação de regência:
1) Quanto aos fatos não denunciados, foram impostas condições para isso. É o que, nos Estados Unidos, chamam de charge bargaining, instituto pelo qual se oferece uma denúncia mais branda ou até mesmo a extinção da ação. No Brasil, esse benefício encontra respaldo no artigo 4º da Lei nº 12.850/2013.
2) Quanto aos fatos já denunciados, foi clausulado o perdão judicial. Nesse caso, os eventuais processos em trâmite prosseguirão para, ao final, ser aplicado o perdão judicial na sentença. Longe de ser "imunidade", tal ato é uma causa extintiva da punibilidade, autorizada por lei (artigo 4º, caput, nº 12.850/2013), como benefício de acordo de colaboração.
Com efeito, o instituto da colaboração premiada tem dupla natureza jurídica. Para as agências oficiais de persecução, constitui relevante "meio de prova". Para o imputado, trata-se de "meio de defesa", em busca de benefícios penais, calibrado conforme alguns critérios.
Primeiro, a espontaneidade do colaborador, ao tomar a iniciativa de procurar as autoridades para revelar fatos que jamais seriam elucidados pelos meios convencionais de investigação; depois, o lastro de materialidade probatória apresentado; por fim, a proporcionalidade em relação à gravidade dos fatos revelados e à efetividade da colaboração.
No caso em exame, todos esses critérios foram contemplados, o que acena à concessão de uma contrapartida premial significativa.
O mais irônico de tudo é que as vozes que levantam a grita contra a suposta generosidade dos benefícios compõem o setor doutrinário que se autoproclama "garantista", em defesa de uma intervenção mínima do direito penal.
De duas, uma: ou esse minimalismo penal é seletivo e serve apenas para atender às conveniências de momento ou simplesmente não existe.
ADRIANO BRETAS é professor de direito processual penal na PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e advogado criminal. Defende, entre outros, o ex-ministro Antonio Palocci na Lava Jato
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