Folha de S. Paulo


Palmira Petratti Teixeira

Cem anos da Vila Maria Zélia

Na rua dos Prazeres, no bairro Belém (zona leste de São Paulo), há um espaço da memória paulistana: a Vila Maria Zélia, retrato de uma época e de uma forma de ocupação do espaço urbano.

A vila seguiu o modelo de outros núcleos operários predominantes no período: casas edificadas no interior de um terreno, separadas da via pública por um portão. Na entrada, um grande jardim com coreto e igreja.
Era cortada por seis ruas principais e quatro transversais, tendo ao fundo o rio Tietê. Contava com 198 casas de seis diferentes tamanhos.

Quem visita hoje o local tem a impressão de voltar no tempo. Jardim, árvores e flores acolhem crianças e adultos ao sol. A capela São José compõe o ambiente de serenidade.

No entanto, um olhar mais atento para os lados reduz o encanto: os imóveis, de uso coletivo e hoje pertencentes ao INSS, sofrem o desgaste do não uso e abandono. Ainda assim, mantêm a atmosfera mágica da Vila Maria Zélia. Parafraseando a conhecida canção, alguma coisa acontece no coração de quem ali chega.

O idealizador do projeto foi Jorge Street, empresário moderno e pioneiro, nascido no Rio de Janeiro em 1863. Médico, cursou humanidades na Alemanha à época da ascensão dos partidos socialistas e das primeiras leis trabalhistas bismarkianas.

Entrou para a atividade industrial por herança paterna e, em 1904, adquiriu a fábrica Santana (SP), iniciando a expansão da Companhia de Tecidos de Juta, produtora de sacaria.

Street se destacou como liderança por sua capacidade de conciliar questões patronais e operárias. Defendia o direito dos trabalhadores à sindicalização e à greve, como maneira de evitar antagonismos entre as classes, e cristalizava a figura do capitalismo mais desenvolvido no país.

Sua obra mais expressiva foi a criação do complexo fábrica e vila operária. À fábrica higiênica, ventilada e equipada, associavam-se ações visando melhorias na qualidade de vida do trabalhador. O casal Street e Zélia Frias supervisionava moradias, educação e saúde.

O cuidado com as crianças nas creches e escolas era primoroso. A família Street participava das festas populares, natalinas e religiosas com os trabalhadores da vila, fato que espantava os demais industriais, sensibilizava os moradores e irritava o movimento operário, o que possibilitava ao empreendedor um controle da força de trabalho e de seus possíveis conflitos. 

Em 1923, Street, com dificuldades financeiras, renunciou à direção da companhia, porém saldou seus débitos em 1925. A fábrica e a vila tiveram trajetórias peculiares.

O complexo mudou de proprietários: Scarpa, Guinle e Estado. A fábrica serviu de presídio político em 1936 e 1937 e, em 1969, as casas foram vendidas aos trabalhadores pelo sistema BNH (Banco Nacional da Habitação).

A Vila Maria Zélia é símbolo das relações de trabalho no Brasil. Conhecida pela harmonia arquitetônica de inspiração inglesa e pelas condições dignas de moradia, tornou-se um local querido por todos que ali viveram. "Era uma  maravilha", sintetizou a tecelã Cinta Amantero.

Cem anos depois, Street, esse empreendedor moderno e consciente, tem muito ainda a dizer. A vila resiste como seu memorial ideológico. Impõe-se hoje a reflexão sobre os espaços públicos pertencentes ao INSS, sem uso utilitário e em ruína.

Esse patrimônio industrial precisa ser restaurado e integrado à comunidade na forma de centros e bens culturais. Uma justa homenagem a Street e aos operários brasileiros.

PALMIRA PETRATTI TEIXEIRA, doutora em história pela USP, foi professora de história do livro na Unesp. Escreveu "A Fábrica do Sonho - A Trajetória do Industrial Jorge Street" (ed. Paz e Terra)

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