Folha de S. Paulo


Ricardo Lewandowski

Fora da Constituição não há salvação

Bertolt Brecht, antevendo os horrores das guerras e os genocídios do século passado, profetizou em conhecido poema:

"Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo".

Essa advertência nos recorda que em situações de crise é preciso observar princípios, guardar coerência, agir com desassombro, sem perder a serenidade e,sobretudo, mostrar-se solidário para com os semelhantes.
Na esfera individual, nessas horas, muitos encontram consolo na religião, alguns na amizade, outros na família, uns poucos na filosofia.

No plano coletivo, porém, as multidões desavisadas costumam buscar amparo em figuras messiânicas, pretensamente dotadas de soluções mágicas, quase sempre apartadas dos marcos civilizatórios que a humanidade construiu ao longo de séculos.

"Salus rei publicae suprema lex esto" costumava ser o bordão esgrimido pelos ditadores da antiga Roma em épocas de adversidade. Para eles, qualquer medida, por mais brutal ou cruenta que fosse, era válida para salvar a República.

Essa tese, retomada num passado relativamente recente pelo jurista alemão Carl Schmitt, serviu de base para algumas das mais ferozes autocracias da centúria anterior.

Só que, desde a derrubada do absolutismo monárquico pelas revoluções liberais -as quais puseram fim à teoria da inimputabilidade dos reis, implantando o Estado de Direito-, não se tolera mais, mesmo a pretexto das melhores intenções, nenhuma ação arbitrária por parte de agentes estatais, cuja atuação deve circunscrever-se rigorosamente aos limites da lei.

Em tempos de crise, quando os consensos se fragilizam e os laços comunitários se esgarçam, a multissecular experiência dos povos indica que o abrigo mais seguro para a sobrevivência de todos é a plena adesão ao pacto social firmado entre os cidadãos, que se consubstancia na Constituição.

Nos países politicamente avançados, ela encerra um conjunto de valores éticos, fundado no respeito à dignidade da pessoa humana, que enseja a convivência pacífica e fraterna entre as pessoas.

A única saída legítima para as crises, seja qual for sua natureza, consiste no incondicional respeito às normas constitucionais.

Nelas estão acolhidos, com o merecido destaque, os princípios da limitação do poder, da isonomia, da legalidade, da inafastabilidade da jurisdição, da presunção de inocência e da ampla defesa, que protegem a coletividade contra o arbítrio e a violência.

Também nelas encontra guarida o postulado da soberania popular -quiçá o mais importante de todos-, que se expressa pelo voto direto, secreto, universal e periódico.

Sobre ele repousa a própria democracia, a qual, segundo afirmava Churchill, com a verve que o caracterizava, é a pior forma de governo, exceto todas as outras.

Por isso, tomando de empréstimo parte de célebre frase atribuída a santo Agostinho sobre o primado da igreja, vale insistir que, nos dias que correm, fora da Constituição não há salvação.

Interpretada esta, obviamente, não no seu sentido literal, mas em conformidade com o conteúdo material que a anima, revelador das concepções originais que inspiraram aqueles que lhe deram vida.

RICARDO LEWANDOWSKI é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP

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