Folha de S. Paulo


João Romeiro Hermeto

Limites da liberdade

Um fenômeno de bojo global vem tomando forma. Embora seu conteúdo não seja, em si, algo novo, sua forma o é. O fenômeno ao qual me refiro é o fascismo, hoje camuflado, por exemplo, sob o disfarce do politicamente correto.

Um exemplo controverso ocorreu com o parlamentar europeu Janusz Korwin-Mikke. No começo de março, ele fez a seguinte declaração: "Mulheres têm que, claramente, ganhar menos do que os homens, pois são mais fracas, menores e menos inteligentes".

O comentário, como se pode imaginar, provocou grande indignação. A reação concreta a ele, contudo, foi o fato mais chocante. O presidente do Parlamento Europeu, Antonio Tajani, impôs algumas sanções a Korwin-Mikke.

As penalidades: revogação de seus erários diários por um período de 30 dias; a suspensão de total participação nas atividades do Parlamento por um período de 10 dias; a proibição de representar a Casa em quaisquer delegações, conferências e fóruns institucionais interparlamentares por um ano.

O Parlamento e a mídia europeia comemoraram fartamente.

O caso suscita um interessante debate sobre os limites da liberdade. Faz-se muito uso da categoria abstrata desta palavra, liberdade, como algo concreto, não suscetível às razões históricas.

Tratar as diferentes acepções desse conceito exigira um espaço maior, mas por ora enfatizo não existir uma liberdade em si. Consequentemente, as defesas à liberdade, ao abdicarem de contextualização, perdem qualquer significado, tornam-se ideologias irracionais, pois recusam o próprio mundo real que pretendem influenciar.

A sociedade de mercado pressupõe relações entre iguais como propriedade privada (humanos como coisas), e a relevância de cada pessoa (ser jurídico abstrato) é realizada no ato de produção (na totalidade). Nele não importa idade, cor, gênero etc. A relação (a troca) entre propriedades privadas no mercado pressupõe mediação por leis, garantia estabelecida por contratos. A troca pressupõe o Estado.

Sob essas relações, é uma afronta ao mercado e à mulher (meio de produção) a ela atribuir características fixas ("mais fracas, menos inteligentes"). Sua realidade como objeto de produção dependerá da atividade, portanto, da pessoa a realizá-la, das relações de trabalho com outros fatores de produção (pessoas e ferramentas), dos meios de produção etc.

Uma mulher que dirige um trator na produção agrícola não terá produtividade potencialmente diferente da de um homem. Quanto menos desenvolvido o instrumento de trabalho, maior relevância têm as diferenças naturais.

Para os defensores da igualdade (pressuposto da sociedade de mercado), a fala de Korwin-Mikke foi uma afronta. É, no entanto, controverso pregar liberdade como valor máximo da sociedade e retirar, arbitrariamente, os principais valores de uma democracia: a liberdade de expressão e a liberdade política.

Eis a contradição: em nome da liberdade em abstrato, pune-se a liberdade concreta.

Revogar a liberdade de expressão e política de uma pessoa em resposta a um comentário desagradável caracteriza fascismo em estrito senso.

Qualquer discussão política do tema foi rejeitada, fundamentando-se uma política apolítica. Caiu-se no irracionalismo, a base do fascismo.

Amanhã, se pessoas como Korwin-Mikke tornarem-se maioria política, aqueles que hoje o impedem de falar terão legitimado as sanções contra elas mesmas por pessoas que pensam diferentemente delas.

Lutam no campo moral, onde a arbitrariedade impera, e realizam uma divisão entre "justos" e "não justos" -ou seja, uma luta sem qualquer cabimento político.

O Brasil de hoje padece deste tipo de luta. Quase não há mais vestígio de embate político, apenas "templários" de uma suposta moral justa.

JOÃO ROMEIRO HERMETO, formado em economia pela USP, é doutorando em filosofia na Universidade Witten/Herdecke (Alemanha)

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