Folha de S. Paulo


ROBERTO DIAS

Não é hora de uma nova Constituinte

Em momentos importantes da vida institucional brasileira, o poder constituinte originário se manifestou para romper com a ordem então vigente. Isso se deu tanto para instituir regimes arbitrários como para viabilizar o surgimento de períodos democráticos.

Basta lembrar os movimentos constituintes que geraram, por um lado, as cartas autoritárias do Estado Novo (1937) e do regime militar (1967) e, por outro, as constituições de 1946 e de 1988.

De tempos em tempos surgem propostas para a convocação de uma Constituinte. Alguns sugerem a elaboração de uma nova Constituição por completo, como defendido recentemente por Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias. Outros, de forma mais contida, sugerem uma Constituinte restrita a certas matérias.

Este último caminho foi sustentado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1998, ao propor uma maneira mais rápida de aprovar as reformas tributária, política e do Poder Judiciário.

Em 2006, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também se mostrou simpático à tese, mas para discutir apenas a reforma política.

E Marina Silva, em 2010, aventou algumas reformas, dentre elas a previdenciária, quando era candidata do PV à Presidência da República.

Eram tentativas -que não foram adiante- de facilitar o processo de alteração da Constituição sobre temas polêmicos, que geravam, como ainda geram, muito dissenso.

A questão é saber se devemos, num período como o atual -de grave crise econômica, acentuada radicalização política, gradual erosão de direitos e escandalosos desvios éticos-, partir para a ruptura de uma Constituição que, apesar de seus defeitos, tem permitido ao Brasil resistir a estocadas mais agressivas.

É o caso de, num cenário como este, convocar uma Constituinte que não estaria atrelada às amarras hoje em vigor? Que não precisaria, por exemplo, respeitar as cláusulas pétreas, como os atuais direitos e garantias fundamentais? A minha resposta é "não".

Não é a hora de descartar a Constituição. Reformas, como sempre, poderão ocorrer, desde que haja respeito às regras do jogo, consenso ampliado sobre os pontos em discussão e obediência às cláusulas pétreas.

A impossibilidade de abolir essas cláusulas e a exigência de aprovação de emendas pelo quorum de 3/5 têm por finalidade proteger o núcleo de nosso Estado democrático de Direito da irracionalidade de maiorias eventuais formadas em momentos de crise.

São garantias de que não impediremos que as próximas gerações tenham o direito de viver em democracia. O melhor caminho não é o da ruptura desse dique.

Nesses quase 30 anos de vigência, a Constituição foi capaz de se atualizar. Foram 95 emendas. Em média, mais de três reformas por ano. Apesar das frequentes mudanças, o texto constitucional atual tem resistido a corrosões de sua essência.

Enfim, é possível fazer reformas incrementais com segurança, sem lançar mão de mecanismos facilitadores da mudança, como a convocação de uma Constituinte exclusiva, ou geradores de profundas incertezas, como a instalação de uma Constituinte ampla.

A abertura de um processo assim neste momento solaparia o que nos resta de segurança institucional, ampliando a polarização, os conflitos e as instabilidades, além de colocar em risco os avanços no campo das liberdades e mesmo da autonomia das instituições.

O pior é que nada no quadro atual indica que faríamos uma Constituição melhor do que a que temos.

ROBERTO DIAS, doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é professor de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas

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