Folha de S. Paulo


DIOGO COSTA

Antagonismo irreal

O novo Projeto Editorial da Folha atualiza o jornal para uma era em que Google e Facebook provocam um "abalo no modelo de negócios que há décadas sustenta as empresas de comunicação".

Conforme o documento, os gigantes da internet sugam dos grandes jornais a verba publicitária e a atenção dos leitores, mas seus modelos não oferecem em contrapartida um "jornalismo profissional praticado de modo independente".

De fato, deixar que um "mecanismo de busca e as redes sociais da internet" se ocupem da formação da sociedade parece perigosa aposta em uma democracia fundada no poder da opinião pública.

Não fica claro, porém, por que os novos modelos da internet seriam mais avessos à independência jornalística que o tradicional modelo de notícias financiado principalmente por anúncios comerciais.

Afinal, por que as Casas Bahia devem financiar minhas informações sobre o terrorismo islâmico? Por que o veículo que me distrai com tirinhas dos Pato Donald deve ser o mesmo que me informa da vitória eleitoral de Donald Trump? Se a informação é um bem público (meu acesso à informação não diminui o seu), por que devemos pagar por ela?

Para o bem ou para o mal, o modelo do grande jornal precisava dessas incoerências para funcionar, não apenas como um ingrediente da democracia representativa mas como seu paralelo.

No final do século 18, quando os americanos ainda discutiam os arranjos do modelo de república democrática que viria a dominar o mundo moderno, James Madison defendia a união das ex-colônias em um grande Estados Unidos da América. Para Madison, havia justiça em grandes números.

Um pequeno Estado pode ser presa fácil dos interesses de uma facção econômica ou ideológica, mas, dentro de uma grande federação, os interesses locais se diluem e se neutralizam.

Assim como uma grande república, grandes jornais também se alicerçam em um público amplo e diverso. Os órgãos da imprensa nunca foram imunes a interesses financeiros ou ideológicos (tanto de anunciantes, como de leitores). A vantagem do grande jornal é que, quando o público é amplo, há maior equilíbrio na diluição de interesses divergentes.

Esse equilíbrio plural se perde quando a primeira página de notícias passa a ser o feed do Facebook. No modelo microconfeccionado das redes sociais, é possível atender a gostos muito particulares e ser subsidiado apenas por anúncios segmentados ao extremo da fronteira tecnológica.

O novo Projeto Editorial indica que a Folha pode ter maior consciência do seu papel de grande jornal no contexto ultrassegmentado.

Na falta de diversidade externa, a veracidade jornalística deve se conduzir pelo aumento da diversidade interna. Assim, a elusiva busca pela imparcialidade seria acompanhada por uma meta mais alcançável, a transparência radical -a minimização de qualquer viés é louvável, mas a honestidade quanto ao viés é imprescindível.

No entanto, o Projeto Editorial erra em sugerir um antagonismo entre novas tecnologias e o tradicional papel da imprensa. As redes sociais e os algoritmos de busca têm o poder de levar informação a mais pessoas do que qualquer outra tecnologia jamais testada.

Cabe a um grande jornal complementar esse alcance com a profundidade da contextualização e da curadoria cuidadosa.

Um jornal que elenca "o avanço dos costumes" como um de seus valores não deveria demonstrar uma atitude reativa contra novos modelos de mídia. No século 21, os costumes dos leitores brasileiros avançam a cada curtida, a cada compartilhamento, a cada clique.

DIOGO COSTA é mestre em ciência política pela Universidade de Columbia (EUA) e diretor-executivo do Indigo - Instituto de Inovação & Governança

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