Folha de S. Paulo


Eugênio Bucci

Fecunda renovação da imprensa

Mais do que um centro fabril de notícias, a boa Redação jornalística se distingue por ser um organismo pensante. Uma Redação profissional de alto nível congrega editores e repórteres que, além de laboriosos na velocidade e nas habilidades práticas requeridas pelos prazos de fechamento, reúnem atributos intelectuais diversos e complementares.

Só uma Redação pensante é capaz de divisar ângulos originais e penetrantes para a leitura da realidade, estabelecer nexos lógicos entre eventos aparentemente desconectados, antecipar tendências e, mais do que tudo, criticar o poder de modo sistemático.

A imprensa é insubstituível na democracia menos por "gerar conteúdo", essa expressão medonha, e mais por proceder a verificação factual cotidiana e metódica, sem a qual os liames minimamente racionais da esfera pública se esgarçam e os processos decisórios legítimos das sociedades livres perdem densidade. O valor do jornalismo vem daí; o resto é armazém de secos e molhados.

O novo Projeto Editorial da Folha descortina com precisão o modo como esse desafio -que, de resto, já é clássico- sofre alterações estruturais com a emergência de dois sintomas centrais do esmaecimento da democracia em escala global.

Os sintomas são o desprestígio dos fatos no discurso político ("pós-verdade" etc.) e o recrudescimento dos monopólios mundiais Google e Facebook, que minam os modelos de financiamento da imprensa independente e remuneram lautamente o sensacionalismo, o entretenimento vulgar e as narrativas desinformativas.

No bojo desses sintomas, afloram populismos mais ou menos fanatizantes de esquerda e de direita que, não por acaso, combatem a imprensa.

Acertando no diagnóstico, o Projeto Editorial aponta caminhos possíveis e criativos, com boa dose de consistência. Com efeito, lá se vão mais de 30 anos desde que este jornal, a partir dos valores do pluralismo, do apartidarismo e da crítica (com transparência e autocrítica), lançou aquela se revelaria a mais fecunda usina de renovação da imprensa brasileira da atualidade. O Projeto Folha, quem diria, virou tradição sem se deixar envelhecer.

Sem divergências de fundo, faço agora duas notas sobre temas que ainda carecem de elaboração. A primeira se refere ao estatuto da fonte. A segunda tem a ver com a necessária internacionalização das Redações independentes, que não pode mais ser adiada.

Se o jornalismo atual deve relatar com equilíbrio os pontos de vista opostos e apresentar relatos conclusivos, mas não sectários, o padrão do diálogo com os entrevistados precisa se aprimorar, na mesma medida em que a responsabilidade sobre a veracidade e fidedignidade da imprensa precisa ser mais compartilhada com a sociedade (não com o Estado, por favor).

Diante disso, quais os direitos das fontes a ser observados? O tema deveria ensejar novas políticas de relacionamento com os entrevistados.

Quanto à internacionalização, há muito mais por fazer. A própria Folha, que apoia programas de aperfeiçoamento no exterior para seus jovens talentos, já realizou coberturas em cooperação com entidades internacionais sem fins lucrativos e obteve resultados satisfatórios, ao menos em parte.

Todavia, num momento em que os limites das sociedades civis suplantam as fronteiras nacionais e até mesmo o combate à corrupção não pode prescindir da cooperação multilateral entre vários países, o jornalismo depende, para ser mais independente e mais efetivo, de desenhos muito mais ousados de parcerias internacionais, especialmente para as reportagens investigativas.

A internacionalização já chegou às boas universidades e às empresas de ponta, mas ainda está longe da rotina das Redações.

No mais, viva o jornalismo crítico, pluralista e apartidário.

EUGÊNIO BUCCI, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, é articulista do jornal "O Estado de S. Paulo" e colunista da revista "Época"

PARTICIPAÇÃO

Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br


Endereço da página:

Links no texto: