Folha de S. Paulo


Leonardo Massud

Legalizar o aborto, não a eugenia

Há muitas controvérsias sobre o número de abortos provocados no Brasil, não só pela dificuldade de se revelar o que é, majoritariamente, clandestino mas especialmente pela diferença metodológica na coleta de dados. Não caberia neste espaço discuti-las.

O que não se pode negar, porém, é que a incidência é massiva, assim como são muitos os casos de mortes em decorrência de complicações do aborto mal induzido.

Por outro lado, o conceito de vida intrauterina não é unívoco. Tantas são as dificuldades teóricas acerca do momento inicial da vida (fecundação, nidação, formação do sistema nervoso etc.) que, em última análise, a vida começa quando você preferir que ela comece.

Não obstante tratar o feto como mero apêndice do corpo da mulher esconda a real complexidade do problema, é inegável que as consequências de uma gravidez e de sua interrupção afetam muito mais a gestante do que qualquer outra pessoa. Por isso, a opção pelo abortamento, ainda que seja tomada em conjunto com o parceiro, deve ficar, ao final, a cargo da mulher.

Interromper a gravidez já traz consequências emocionais mais do que suficientes para recomendar repouso. Mais do que isso, a mulher precisa de cuidados profissionais. Tratar como crime é querer impingir mais um sofrimento a quem, por qualquer circunstância que seja, tomou essa drástica decisão.

Sim, o aborto deve ser legalizado, seja por razões de saúde pública -para evitar a mortalidade ou sequelas para as mulheres mais pobres-, seja por uma política criminal mais racional e humanista.

A legalização do aborto, para ser humanitária e constitucional, porém, só pode ser total, ou seja, para qualquer gravidez, sem restrições. Alargar as permissões, além dos casos de risco de vida ou de estupro, para apenas incluir hipóteses como o risco de microcefalia é patrocinar a nefasta eugenia.

Não se defende aqui a punição da mulher que decide interromper a gravidez porque descobriu que gesta uma criança com deficiência. Nesse caso, a escolha é pessoal. O que não é possível, em pleno século 21, é achar normal que o Estado patrocine a eugenia.

Por que a vida com microcefalia é descartável e outras não? Quais serão os próximos? Todos os que não se encaixam na apertada caixa da "normalidade" que cismamos em construir e cultivar socialmente? Não julguemos as mães, mas nós mesmos enquanto sociedade.

Que espécie de comunidade pretendemos construir se não aceitamos ou mesmo louvamos a diferença? Seguramente parte preciosa da riqueza de nossa civilização é fruto do convívio entre as mais diversas pessoas.

Há algo muito mais do que simbólico em alargarmos as hipóteses de aborto nessa direção (da eugenia). Embora se queira disfarçar o incômodo com os "incômodos", nada mais faremos do que reeditar, com roupas novas, o extermínio daqueles considerados como de menor valor.

Assim, nós nos comportaremos, como cada vez mais fazemos, como consumidores e não como cidadãos, rejeitando as "mercadorias" fora do "padrão".

LEONARDO MASSUD é professor de direito penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e advogado criminal

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