Folha de S. Paulo


JÚLIO NORONHA e ROBERSON POZZOBON

Caixa dois deveria ser anistiado? NÃO

A NEGAÇÃO DA REALIDADE

O dicionário "Houaiss" define "instinto" como o "impulso interior que faz um animal executar inconscientemente atos adequados às necessidades de sobrevivência própria, da sua espécie ou da sua prole". Não é pela (ou com) razão, mas por instinto de sobrevivência e autoproteção que boa parte da classe política brasileira se esforça para viabilizar a anistia do caixa dois.

Em defesa dessa prática afirma-se que ela não se confundiria com a corrupção; portanto, sendo recorrente há muito tempo, seria merecedora de perdão.

Menciona-se, ainda, que os valores recebidos por essa via teriam sido destinados às campanhas eleitorais, não ao enriquecimento pessoal, o que não seria tão grave.

Eles não poderiam estar mais enganados -ou não poderiam tentar nos enganar mais.

Corrupção é receber, em razão da função, ainda que antes de assumi-la, vantagem indevida. Não faz diferença alguma se a propina é designada como agrado, comissão, pixuleco, cafezinho ou "contribuição de campanha".

Empresa que destina valores a candidato, esperando receber apoio espúrio aos seus interesses, não realiza doação eleitoral. As contribuições aos mais variados candidatos, vinculados aos mais variados partidos e ideologias, revelam que não se trata de suporte a um programa de governo, mas, na verdade, de aposta em todos os que podem ganhar.

Procura-se agradar a todos os potenciais vencedores da eleição para que depois seja possível cobrar favores e garantir a manutenção da "regra do jogo".

Há décadas o esquema vem funcionando assim: o empresário promete destinar vantagens indevidas a diferentes agentes públicos, integrantes da mesma engrenagem criminosa. Os funcionários públicos recebem propina para permitir, por fraude em licitação e cartel, que o empresário conquiste contratos.

Aos agentes políticos os repasses visam garantir que nomeiem e mantenham nos cargos públicos pessoas aderentes à negociata. Nesse conchavo, ninguém quer receber às claras os valores pela ajuda ilícita.

Recorre-se aos operadores financeiros, verdadeiros lavadores profissionais de dinheiro, que viabilizam o pagamento por meio de contas no exterior, contratações de empresas de fachada e repasses de valores em espécie por meio do caixa dois.

Ainda que seja recorrente e fenômeno histórico, o caixa dois não perde a sua natureza. Os crimes não perdem a sua natureza quando são muito praticados ou encarados como "modelo reinante". Considerando que o Brasil é, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o país com o maior número absoluto de homicídios, seria também o caso de pensar em anistiar essa prática criminosa?

A prática do caixa dois atenta contra a democracia. Para a empreiteira que defrauda licitações públicas, o repasse de valores não é doação, mas investimento. Para o agente público que os recebe, é dívida que será paga com o exercício de suas funções, às custas da sociedade.

Além disso, omitir recursos recebidos em campanha política esconde o quão comprometido um político está com aqueles que financiaram seu projeto de poder. Você não gostaria de saber quando o jogo do time de coração é apitado por um juiz que "torce" para o adversário?

Não importa o nome, a recorrência ou o fim dado ao recurso indevido recebido por agente público. Caixa dois no Brasil está longe de ser diferente de corrupção, de ser um mero crime eleitoral ou um delito menor. Não importa a cor com que se queira pintar, não há simples ou inocente caixa dois. Pensar o contrário é negar a realidade.

JÚLIO NORONHA é procurador da República e integrante da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal no Paraná

ROBERSON POZZOBON é procurador da República e integrante da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal no Paraná

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