Folha de S. Paulo


editorial

A reforma do humano

Comemora-se neste ano meio século do primeiro transplante de coração, realizado em dezembro de 1967 pelo cirurgião sul-africano Christiaan Barnard. O procedimento só não é corriqueiro hoje pela carência de doadores; na época, causou furor.

A comoção advinha de cruzar uma fronteira simbólica. O que todos viam como âmago da vida (se não da alma) podia ser substituído e resvalava, assim, para a condição de objeto técnico.

Processo similar de normalização se deu com a fertilização in vitro. Em breve, deve acontecer o mesmo com a manipulação do genoma, que para não poucos é a sede do que significa ser humano.

Convém ir devagar com o andor, no entanto, recomenda um relatório lançado na terça-feira (14). "Edição do Genoma Humano: Ciência, Ética e Governança", elaborado a pedido das academias norte-americanas de Ciências e de Medicina, emergiu de um comitê internacional com 22 especialistas.

O esforço de autorregulação se fez necessário pela propagação, em laboratórios do mundo todo, de técnica que permite modificações muito precisas nas sequências de DNA que compõem o genoma.

O relatório distingue duas classes fundamentais de tecidos no organismo: os compostos por células somáticas, cuja modificação genética não seria transmitida a descendentes, e a linhagem germinativa, cuja manipulação seria incorporada às gerações futuras.

No primeiro caso, o comitê considera que basta obedecer às diretrizes já existentes nos Estados Unidos e em vários países para disciplinar as áreas de reprodução humana e de terapias genéticas (que empregam técnicas bem menos precisas e até aqui contam com poucos casos de sucesso).

Os especialistas recomendam, porém, que sejam aprovados por ora apenas testes clínicos para tratar doenças, sem incursões no "melhoramento". Uma coisa é modificar o DNA de alguém com distrofia muscular para lhe dar mais força, outra é fazer o mesmo para que um atleta melhore seu desempenho.

A novidade está em que o comitê também admite pesquisa com modificações genéticas de embriões, que seriam herdadas por sua futura prole –mas só quando houver evidências de que possam evitar síndromes congênitas graves, como hemofilia, e sob o compromisso de acompanhar por gerações a ocorrência de danos imprevistos.

É da natureza do humano encontrar e superar novas fronteiras. A diretriz do relatório preconiza que isso se realize com cautela, não com interdições.


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