Folha de S. Paulo


MARIA JOÃO MARQUES

Mário Soares da discórdia

Algumas pessoas em Portugal estão por estes dias espantadas pela ausência –gritante e ostensiva– do povo comum português nas cerimônias fúnebres de Mário Soares, morto no último dia 7.

Houve funeral de Estado cuidadosamente preparado e executado –e bonito. Os políticos louvaram em abundância Soares. Os jornalistas lamentaram-se como se tivesse morrido o gatinho preferido. As televisões e jornais esqueceram que existia resto do mundo.

A população? Não quis saber.

Mas não há razão para espanto. Qualquer pessoa da minha geração (nasci no ano da revolução que tornou Soares um titã nacional) assistiu apenas a erros atrás de erros do político que em 1975 fez parar a intentona comunista de instaurar em Portugal uma ditadura pró-soviética, salvando a incipiente democracia mesmo à beira do precipício.

Nos últimos anos, Soares escrevia colunas repletas de maluquices que provocavam risadas gerais.

Declarou apoio ao ex-primeiro-ministro José Sócrates (investigado sob suspeita de corrupção), que garantia ser um preso político. Qual dono do regime, ameaçou até os magistrados que tutelam o processo.

Estranhamente, para tão convicto democrata, dedicou-se a decretar ilegítimo o anterior governo, escolhido por mais de 50% dos votos em eleições mas (pecado mortal) de centro-direita, e convidou o povo, com muito pouca sutileza, a usar a violência contra os então primeiro-ministro e presidente da República.

Recuando no tempo, as proezas não melhoram. Em 2005, com 81 anos, Soares candidatou-se a um terceiro mandato como Presidente da República. Motivo? Cavaco Silva (o tal presidente do parágrafo acima) havia-se candidatado, e Soares não concebia que o único político dos tempos democráticos que com ele rivalizava pudesse suceder-lhe como presidente.

Os eleitores presentearam tais motivações com um terceiro lugar e 15% dos votos. O rival foi eleito no primeiro turno.

Mais para trás: depois dos seus dois mandatos como presidente, recusou o recato. Candidatou-se, pelo seu partido de sempre, o Partido Socialista, ao Parlamento Europeu. Prometia durante a campanha que seria presidente da Casa.

Não foi. Perdeu para Nicole Fontaine, francesa a quem Soares cuidou de apelidar de "dona de casa". (Mas, atenção, para as feministas de esquerda, tal tirada machista é irrelevante.)

Termino com a calamitosa descolonização de África no pós-revolução de 1974, ainda não perdoada. Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, preferiu ser fiel à ideologia anticolonial que defender os interesses dos portugueses que viviam nas colônias africanas.

Muitos perderam todas as suas poupanças e bens e regressaram a Portugal para serem tratados como empecilhos pelo governo. Soares nunca mostrou remorso ou empatia com as agruras dessas pessoas. Os retornados ainda estão vivos e compreensivelmente não nutrem afeto pela memória de Soares.

Sim, alguns escandalizaram-se pela falta de emoção popular nas cerimônias fúnebres de Soares, queixando-se que não lhe sabíamos agradecer a democracia.

Mas, em boa verdade, foi Mário Soares que nas últimas décadas da sua vida não esteve à altura do seu momento dourado, quando enfrentou os comunistas em 1975.

MARIA JOÃO MARQUES, economista e empresária, é colunista do site de notícias português Observador. Graduada pela Universidade Católica Portuguesa, é mestre em Estudos Orientais pela mesma instituição

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