Folha de S. Paulo


FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO

A legislação permite que Rodrigo Maia tente se reeleger presidente da Câmara? NÃO

INTERPRETAÇÃO EM TEMPOS DE PÓS-VERDADE

O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) parece realizar um bom trabalho à frente da Câmara dos Deputados. Eleito em julho para um mandato-tampão, conseguiu em poucos meses superar o controvertido período de seu antecessor, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), hoje em prisão.

Esse desempenho encorajou deputados da base do governo e mesmo da oposição a defender o direito a um novo mandato. A imprensa dá conta de que tal apoio asseguraria até vitória já em primeiro turno.

O problema é que essa conveniência política esbarra numa questão jurídica: os presidentes da Câmara e do Senado não podem ser reeleitos numa mesma legislatura.

A vedação não está em dispositivo do regimento interno de cada Casa. Nem é só uma praxe parlamentar. Há expressa proibição constitucional. O artigo 57, parágrafo 4º da Constituição Federal determina em cada legislatura (o mandado de quatro anos obtido em eleições) ser "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente".

O texto constitucional não deixa espaço para interpretações. O constituinte quis proibir que um mesmo parlamentar tivesse dois períodos sucessivos durante um mesmo mandato parlamentar.

A única possibilidade de um deputado dirigir a Câmara por duas vezes seguidas será se, entre uma e outra eleição, for reeleito pelo voto popular. Nesse caso, afasta-se a vedação por se tratar de legislaturas distintas. Fora disso, não há margem para volteios hermenêuticos.

Dizem que a vedação deve ser relativizada, por ser um mandato-tampão. A tese não convence. O texto constitucional não fala na proibição de "um novo mandato" ou de "um novo período de dois anos". É preciso ao dizer ser vedada a "recondução para o mesmo cargo". Ora, quem está no cargo, como efetivo (ainda que por tempo curto), foi conduzido por seus pares para ocupar o cargo. Candidato e reeleito, teremos recondução. Na mesma legislatura. Ou seja, haverá afronta direta ao texto constitucional.

Os precedentes judiciais não ajudam à tese de recondução. Logo depois da emenda que permitiu a reeleição para o Executivo, os tribunais se manifestaram sobre a candidatura de vices que assumiam o cargo efetivo por morte ou impedimento do titular. E afirmaram que o exercício efetivo por um período inferior ao mandato deve ser considerado como exercício pleno, limitando o direito a apenas uma candidatura subsequente.

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) várias vezes afirmou que o impedimento pelo exercício efetivo do mandado é o mesmo seja por um dia ou vários meses.

Boas intenções ou conveniências não são suficientes para alterar a Constituição. A finalidade da vedação está em impedir que um deputado se utilize do poder do cargo para se eternizar no comando da Câmara. A vedação é da recondução, salvo se houver a renovação do mandato popular, nova legislatura.

Permitida, agora em fevereiro, nova candidatura de Maia, se aceitará sua recondução. Aceito o precedente, abriremos as portas para, amanhã, um parlamentar se eternizar na presidência da Câmara (e na linha sucessória do presidente da República). O que vai contra o preceito republicano, presente em vários dispositivos constitucionais.

Está na moda a pós-verdade, o predomínio das crenças pessoais sobre a realidade objetiva. Diante da objetividade da norma constitucional é bom evitar a "pós-verdade jurídica". Já devíamos ter aprendido que piruetas hermenêuticas, interpretações de conveniência, fazem mal à saúde institucional.

FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO, advogado, é professor titular do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP

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