Folha de S. Paulo


Angela Vidal Gandra Martins

STF, aborto e Estado de Direito

A decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto poderia ser criticada por meio de diversos enfoques.

Optei por refletir sobre sua incompletude a partir da filosofia do direito, ao comprovar como a falta de razoabilidade pragmática leva a perder a conexão com a realidade, deixando-se de definir as coisas tal como são. Nesse sentido, refiro-me tanto à determinação do início da vida a partir dos três meses da concepção quanto ao direito sexual "fundamental" da mulher, em contraposição ao do nascituro.

Em filosofia estuda-se o ente em sua essência. No caso, o ser humano o é desde que começa a existir, ainda que sua potencialidade se atualize progressivamente. Não nos tornamos humanos por etapas.

O nascituro é um ser humano dependente de outro, não uma coisa, um animal, parte do corpo da mãe ou um amontoado de células. Sob um enfoque biológico, também poderíamos ser considerados dessa forma. O STF não tem competência científica para afirmar algo que nem em seu âmbito tem confirmação e basear sua decisão nessa criação artificial da "realidade".

Outro argumento sofismático é o da autonomia da mulher. De fato, as escolhas humanas são livres e responsáveis, englobando assim as consequências que geram. Nesse sentido, a decisão vem antes do ato sexual. Uma vez concebido o filho, a "autonomia" é deste, ainda que não possa exercê-la e deva ser protegido em seu direito de viver. Com certeza, se fosse perguntado, responderia positivamente.

O voto que atribui à mãe o "direito" sem fundamento jurídico, afirmando que toda pessoa deve ser tratada como um fim em si mesma e não como meio para satisfazer interesses de outrem, deveria ser antes aplicado ao nascituro, apoiado, este sim, pela Constituição.

E se acredita o relator que está protegendo a integridade física e psíquica da mãe, poderia fazer uma enquete fática sobre as consequências desse homicídio anti-humano nas mentes das ex-mães.

Um Estado democrático de Direito radica-se tanto no respeito à forma quanto em certos bens básicos reconhecidos, não atribuídos, pelo sistema jurídico, a começar pela vida. No plano sistêmico, a decisão é também lamentável, ao afirmar sem base legal que a Constituição não acolheu o Código Civil, que reconhece os direitos do nascituro desde sua concepção.

Um "rule of law" deve depender mais do direito do que de sua interpretação, porém não pode depender da imaginação de quem opera o direito.

Poderia ainda continuar discorrendo sobre o voto ambíguo em outros aspectos: procurar evitar a prática do aborto e descriminalizá-la simultaneamente; desconsiderar o nascituro como um bem juridicamente relevante etc. Prefiro, contudo, terminar de forma mais plástica.

Tive a oportunidade de conhecer amigos do dr. Bernard Nathanson, o denominado "rei do aborto", que praticou o procedimento primeiro em sua namorada e depois montou abortários pelos Estados Unidos.

Alguns anos depois, durante uma ultrassonografia, percebeu que ali se encontrava uma vida. Por meio de um levantamento verificou que em seus estabelecimentos foram realizados 72 mil abortos, sendo que 5.000 por suas próprias mãos. Tornou-se, a partir daí, um ativista pró-vida, lamentando não ter tempo suficiente para reparar seus crimes.

Se nosso STF também se abrisse à realidade estaria talvez mais apto a entender o que diz o direito.

ANGELA VIDAL GANDRA MARTINS, doutora em filosofia do direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é sócia da Advocacia Gandra Martins

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