Folha de S. Paulo


ANTHONY DEPALMA

Fidel, mestre criador de mitos

A morte de Fidel Castro desencadeou um tsunami de palavras que inundou os noticiários pelo mundo afora. Mas das incontáveis palavras escritas, faladas ou gritadas por jornalistas, analistas, críticos e devotos, quatro delas, enviadas em um tuíte pelo presidente eleito dos EUA, Donald Trump, estão entre as poucas inegavelmente verdadeiras.

"Fidel Castro está morto!", declarou. Os tuítes de Trump geralmente guardam uma conexão bastante vaga com a realidade. Em relação a Fidel, todavia, suas quatro palavras são tudo o que pode ser dito com absoluta certeza sobre o homem que por mais de meio século conseguiu inflar a importância de seu pequeno país.

O lugar de Fidel Castro na história está seguro, mas não é esse o caso de seu legado, em grande parte porque não existe hoje nem jamais existirá um consenso sobre qualquer aspecto de sua vida que seja tão definitivo quanto o tuíte de Trump sobre sua morte.

A vida de Fidel é cercada por tantos mitos, muitos criados por ele próprio, que as paixões muitas vezes anuviam a razão e prejudicam a capacidade de avaliar a realidade da Cuba que ele criou.

Desde o início de sua carreira de rebelde, Fidel foi mestre criador de mitos. Aproveitou o fracasso humilhante do ataque ao quartel da Moncada, em 1953, e o converteu no arquétipo fundador de sua revolução.

Na Serra Maestra, com um grupo de seguidores maltrapilhos e alguns poucos fuzis de caça, ele declarou a repórteres americanos que em pouco tempo derrotaria o poderoso exército do ditador Fulgencio Batista e restauraria a democracia constitucional em Cuba, sem reivindicar qualquer poder para ele próprio e sem declarar qualquer hostilidade em relação aos Estados Unidos.

Após a fuga de Batista, Fidel -jovem, arrojado e carismático ao extremo- percorreu os Estados Unidos em um tour da vitória, assegurando a todos que não havia absolutamente nada em sua revolução, nem mesmo de leve, que cheirasse a comunismo.

Em seguida, abraçou a União Soviética e colocou o futuro do mundo em risco, deixando que os soviéticos posicionassem armas nucleares na zona rural cubana.

Fidel dominou as mídias sociais muito antes da internet ser inventada. Ele compreendia perfeitamente o poder da imagem e da palavra e continuou a travar a "batalha de ideias" até o fim de sua longa vida.

Convenceu os milhões de cubanos obrigados a viver de restos de comida durante o chamado "período especial" de que o sacrifício que faziam era necessário para a defesa da pátria. Convenceu uma geração inteira de estudantes cubanos de que tinham sido abençoados por terem ensino gratuito, apesar de seus diplomas serem inúteis, na ausência de empregos qualificados.

Ele os levou a crer que tinham o melhor sistema de saúde do mundo, mas a verdade só era revelada quando se defrontavam com farmácias com estantes vazias ou hospitais sem lençóis limpos e medicamentos básicos.

E, durante a maior parte do tempo em que foi líder indiscutível do país, ele convenceu os cubanos de que as dificuldades enfrentadas na vida diária eram culpa dos imperialistas americanos. Mesmo depois de ter entregue o poder a seu irmão, Raúl Castro, e de Raúl ter acordado um degelo histórico com os Estados Unidos, Fidel se recusou a virar a página e deixar o passado para trás.

Em Miami, cubanos receberam a notícia de sua morte com aplausos. Em Havana, longas filas de pessoas passaram pela Praça da Revolução para manifestar tristeza -é impossível, contudo, saber o que de fato sentiam, pois o Estado policial em que vizinhos vigiam vizinhos, criado por Fidel, ainda vigora.

Herói? Ditador? Pai? Essa discussão vai perdurar por muitos anos.

Cuba precisa agora iniciar o processo árduo da vida pós-Fidel. A ilha, com o tempo, voltará a assumir suas dimensões reais -um pequeno país caribenho com 11 milhões de pessoas que terão de enxergar o mundo em que vivem tal como ele é, não mais sob o disfarce que lhes foi mostrado durante tantos anos por um mestre na criação de mitos.

ANTHONY DEPALMA, jornalista, foi repórter e correspondente do jornal "The New York Times". É autor de "O Homem que Inventou Fidel" (Companhia das Letras), entre outros livros

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