Folha de S. Paulo


RODRIGO DE ABREU SODRÉ SAMPAIO GOUVEIA

Anistiar crimes passados relacionados ao caixa dois fere a Constituição? NÃO

EXERCÍCIO LEGAL DO DIREITO DE DEFESA

A alteração, na calada da noite, do pacote de medidas contra a corrupção apresentado pelo Ministério Público, concebido no fervor da paixão entre o clamor público das ruas e o Congresso Nacional, traz à memória a história do Cavalo de Troia, relatado no clássico "Odisseia", de Homero.

Isso porque a comissão da Câmara dos Deputados, ao aprovar o texto que poderá criminalizar o caixa dois, escondia uma emenda no projeto de lei, a qual parece objetivar extinguir de punição penal crimes que podem estar camuflados em fontes de recursos financeiros não contabilizados e não declarados aos órgãos de fiscalização.

Em tese, caracterizam o crime eleitoral e de lavagem de dinheiro, peculato, corrupção passiva e ativa e evasão de divisas, todos praticados com o fim de fomentar partidos políticos e a corrida eleitoral.

A emenda legislativa que comento é o famoso presente de grego, que poderá impedir o processamento e a condenação de criminosos.

No texto original do projeto apresentado pelo Ministério Público Federal, o sujeito ativo da tipificação penal será o candidato que receber recursos não declarados nos 45 dias anteriores ao primeiro turno, o chamado período eleitoral. Já na comentada emenda, passa a ser qualquer um que já se beneficiou de forma ilícita e antecedente à modalidade de caixa dois.

De todo modo, apesar de surgir um inegável descompasso de vontade entre a opinião pública e os representantes do povo eleitos para exercerem o seu poder, especialmente em vista da alteração inicial do projeto de lei poder ser um tiro certeiro na Lava Jato, o Congresso Nacional, aprovando a emenda legislativa, fará surgir a tal da alardeada "anistia".

Como diz o jargão jurídico, a lei nem sempre é justa, mas é a lei.

Explicando melhor. Na academia de ciências jurídicas e sociais, aprende-se a história de Ulisses e as sereias (também narrada na "Odisseia"), cuja lição busca fazer compreender que a nossa Carta Magna traz proteção especial destinada a combater momentos difíceis e de sedução social e política.

Por isso, torna certas cláusulas constitucionalmente pétreas, como vige o inciso XL, do artigo 5º, que diz que a lei penal retroage apenas para beneficiar o réu. Diz o mesmo o artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal Brasileiro.

Logo, no caso de serem anistiados os crimes exemplificados acima, constitucionalmente e legalmente, o exercício do direito de defesa -por exemplo, de quem será ou está sendo processado ou já foi condenado na Lava Jato e na Justiça Eleitoral- fará extinguir a punibilidade de empresários e políticos, colocando alguns já em liberdade.

O processo penal é um instrumento de direito e de garantia da liberdade jurídica, ainda que a nova lei venha ser interpretada como algo divorciado da idoneidade representativa política, por estar a contrariar a vontade popular.

O anseio do povo de combater a corrupção está à mercê dos freios e contrapesos da Carta Mãe e da Codificação Penal e Processual Penal. Portanto, se o Congresso Nacional aprovar a redação da emenda surpresa, poderá anistiar crimes praticados em relação de simbiose com o famigerado caixa dois.

Tudo com amparo constitucional, para transformar suspeitos, réus e culpados em inocentes, com base nos direitos e nas garantias fundamentais que cada cidadão desfruta no Estado democrático de Direito.

Trata-se, no fim das contas, da proteção do indivíduo frente ao poder limitado do Estado. A única alternativa que resta para o projeto da emenda não seguir adiante é a pressão popular junto aos congressistas.

RODRIGO DE ABREU SODRÉ SAMPAIO GOUVEIA é advogado criminalista da Sampaio Gouveia Advogados Associados. É especialista em direito penal econômico pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas

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