Folha de S. Paulo


Anistiar crimes passados relacionados ao caixa dois fere a Constituição? SIM

DIREITO E ÉTICA DEVEM ANDAR JUNTOS

Causou perplexidade e indignação à sociedade a notícia de que os congressistas pretendem anistiar seus próprios crimes.

A anistia é uma forma de indulgência soberana e pressupõe lei do Congresso Nacional (art. 48, VIII, da Constituição Federal). Apaga o fato delituoso, mas o tipo penal permanece íntegro.

Ela faz desaparecer os efeitos penais da condenação, voltando o favorecido à condição de primário. Todavia, subsistem os efeitos civis, como o dever de reparar o dano e a perda de bens obtidos com a prática criminosa. É causa que extingue a punição, conforme previsto no artigo 107, inciso II, do Código Penal.

O direito, a ética e a moral andam de mãos dadas. Uma lei, mesmo que observe o devido processo legislativo, pode ser considerada imoral e, nesse caso, será declarada materialmente inconstitucional. Isso pode ocorrer quando a lei não visar o bem comum, mas apenas o de alguns.

A imprensa tem noticiado que está sendo cogitada a aprovação de anistia que alcançará inúmeros congressistas que cometeram o crime denominado de caixa dois, que atinge os pilares da democracia.

Ou seja, está sendo elaborada lei, a ser votada e aprovada pelos próprios autores do delito, pela qual eles estarão, no final das contas, se autoperdoando.

O caixa dois implica abuso do poder econômico e viola a isonomia no processo eleitoral. Enquanto os candidatos honestos contabilizam e declaram à Justiça Eleitoral doações recebidas, os desonestos se valem de doações ilegais -estes, portanto, terão chance muito maior de serem eleitos, pois os valores não declarados empregados nas campanhas são estratosféricos.

A Operação Lava Jato já denunciou e até mesmo condenou por crimes como corrupção e lavagem de dinheiro muitos empresários e políticos.

Na elaboração da legislação devem ser observados princípios, normas dotadas de alto grau de generalidade que servem de base para a formação do ordenamento jurídico. Os princípios devem ser empregados para orientar a interpretação das leis de teor obscuro ou para suprir-lhe o silêncio.

A lei não pode ser elaborada ao bel prazer do legislador. Ele deve atentar para os diversos princípios constitucionais expressos e implícitos, bem como para os princípios gerais de direito, que podem ser considerados como a consciência ética de um povo.

Com efeito, na elaboração da legislação não podem os parlamentares violarem os princípios da moralidade e da impessoalidade, bases do processo legislativo.

Também deve ser observado o disposto no artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que deixa muito claro que a lei deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Esses objetivos não serão alcançados com a aprovação de um perdão para congressistas que cometeram o crime comumente designado como caixa dois, que na realidade é uma forma de falsidade ideológica prevista no artigo 350 do Código Eleitoral.

Portanto, é de manifesta inconstitucionalidade eventual anistia a delitos cometidos por congressistas. A lei, que deve ser genérica e impessoal, não pode beneficiar os próprios políticos que a aprovaram, ferindo de morte os princípios da moralidade e da impessoalidade que devem nortear a elaboração da legislação.

CÉSAR DARIO MARIANO DA SILVA, mestre em direito das relações sociais pela PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é promotor de Justiça em São Paulo

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