Folha de S. Paulo


Itamar Gonçalves e Benedito dos Santos

Uma questão de dignidade

A Câmara dos Deputados terá a responsabilidade de votar nos próximos dias um projeto de lei que pode alterar radicalmente - e para melhor - o modo como as crianças e adolescentes vítimas de violência física, psicológica e sexual são tratadas no ambiente institucional do Estado brasileiro.

Nos referimos ao projeto de lei 3792/2015, apresentado pela Frente Parlamentar de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, que tem como autora principal a deputada Maria do Rosário (PT-RS) e que contou, durante a sua criação, com a colaboração da Childhood Brasil, Unicef, integrantes do sistema de Justiça, da segurança pública e dos serviços de atendimento, além do apoio da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e Juventude, do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes e da ONG Think Olga.

O projeto estabelece um sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Na prática, entre outros aspectos, o projeto visa evitar que as vítimas de violência sofram com o excesso de exposição à situação que as acometeu, com massacrantes repetições desnecessárias do fato ocorrido.

Hoje, a vítima narra a situação inúmeras vezes, seja primeiramente na escola, depois no conselho tutelar, a seguir nos órgãos de saúde e, enfim, na delegacia. Uma verdadeira e dolorosa via-crúcis.

O PL também detalha o procedimento da escuta especializada e do depoimento especial, talvez o coração da proposta, com o objetivo de garantir a segurança e a proteção da vítima ou testemunha.

Trata-se de estabelecer que o depoimento da vítima seja tomado por um profissional com formação específica e sensibilidade para permitir que ela narre o fato ocorrido sem precisar ouvir perguntas inadequadas, que mais tendem a constranger e culpá-la pela violência sofrida.

O mesmo procedimento deve ocorrer na fase do Judiciário, com a vítima depondo em ambiente separado da sala de audiência, transmitido por circuito fechado de TV e gravado, para acompanhar o trâmite do processo e reduzir o número de vezes em que a criança precisa contar a violência sofrida.

No âmbito do Judiciário, o depoimento especial já ocorre em cerca de 120 salas pelo país, a partir de adesões à recomendação Nº 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça.

A primeira experiência foi implantada em Porto Alegre, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em 2003. No entanto, o Estado brasileiro não pode contar com a simples boa intenção de iniciativas isoladas.

Por isto é vital a aprovação do PL 3792/2015, para que se possa estabelecer a escuta qualificada não somente no sistema de Justiça mas em toda a rede de proteção.

A escuta protegida pode assegurar que perguntas descabidas como, "Qual roupa você estava usando?" e "Se não gostou, por que não gritou?", entre outros absurdos, não sejam mais ditos às crianças e aos adolescentes vítimas de violência.

Os casos de estupro que chocaram o Brasil nas últimas semanas, longe de serem fatos isolados, integram um terrível cotidiano que só será resolvido com a adoção de três estratégias básicas: proteção legal, políticas públicas e mudança cultural, no sentido de contrapor a ideologia machista com uma nova concepção de masculinidade.

Aprovar o PL 3792/2015 significa empoderar a sociedade para enfrentar a cultura do estupro e outras formas de violência contra crianças e adolescentes.

ITAMAR GONÇALVES é gerente da ONG Childhood Brasil. Integra a coordenação de pesquisa sobre crianças e adolescentes em processos judiciais

BENEDITO DOS SANTOS, doutor em antropologia pela Universidade da Califórnia Berkeley (EUA), é professor e pesquisador da área de psicologia da Universidade Católica de Brasília

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